Francisco Moita Flores: “Julgo que um bom debate de ideias vale mil discursos engravatados”

O ex-inspector da Policia Judiciária e ex-autarca Francisco Moita Flores acaba de lançar o seu primeiro romance policial, intitulado “O Mistério do Caso de Campolide”.

Moita Flores estreia-se assim na escrita de policiais, depois de nos últimos anos se ter dedicado aos romances históricos.

Este enredo agora lançado por Francisco Moita Flores chegou às livrarias portuguesas no dia 9 de Outubro, tendo agora concedido uma entrevista ao Infocul, onde fala um pouco desta obra, bem como da sua carreira de escritor.

Infocul (IFC) – “O Mistério do Caso de Campolide” é a sua mais recente obra. Quando começou a escrever este romance policial?

Francisco Moita Flores (FMF) – Este policial é uma ideia velha. Não tanto a história, que comecei a pesquisar e a escrever há cerca de dois anos, mas a ideia de escrever um romance policial. O meu passado ligado à PJ tinha repercussões nas milhares de sessões de autógrafos que fiz, ao longo destes 35 anos. Era inevitável a pergunta: Tem algum romance policial? Resisti muito tempo. Não queria a minha carreira literária confundida com a minha vida policial. Chegou a hora e ele aí está.

Infocul (IFC) – Quais os maiores desafios para uma abordagem na qual ‘obriga’ o leitor a ler o livro de fio a pavio para entender do que se trata, optando por um constante suspense que incentiva à descoberta da história?

Francisco Moita Flores (FMF) – É uma técnica narrativa própria. Regressei à Agatha Christie e ao Simeneon. Li várias obras procurando entender os ‘pontos quentes’ da trama. É um equilíbrio complicado. Os personagens, que queremos sob suspeita, têm de evoluir até ao limite da dúvida e deixá-los aí, sem acções que os comprometam, numa espécie de limbo, translúcido, que provoca a curiosidade de quem lê. De certa forma, é uma provocação ao leitor que viaja até quase ao fim do romance.

Infocul (IFC) – Por ser a mais recente, este é a sua melhor obra literária? Ou cada uma das suas obras deve ser analisada individualmente e devidamente enquadrada sobre a temática e temporalidade em que foi escrita?

Francisco Moita Flores (FMF) – A minha melhor obra literária é sempre a próxima. É uma necessidade de qualquer escritor desvincular-se de personagens e histórias quando as termina e envia para a editora. Caso contrário, ficam a habitar-nos, não rompemos a relação psicoafectiva, passamos a vida a repetir o mesmo psicodrama, ainda que com outras roupagens. É assim que, cada uma das minhas obras é só uma, é aquela e não outra.  Amo-as intensamente enquanto escrevo. Depois digo-lhe adeus com firmeza. O tempo está à minha espera para outro desafio e para nova paixão.

Infocul (IFC) – O que pretende transmitir a quem ler esta obra?

Francisco Moita Flores (FMF) – Este romance tem uma carga simbólica forte. É publicado no ano em que se comemora o centenário da PIC – Polícia de Investigação Criminal – que, de certa forma, materializa a emergência do pensamento neo-iluminista que nos finais de Oitocentos se insurgiu contra a tortura e a injustiça dos tribunais, um pouco por toda a Europa. Quis celebrar, através do detective herói do romance essa efémeride, criando um personagem que pensa com o futuro na cabeça. Por outro lado, coloquei a acção em 1937 em que o Estado Novo está maduro. Não queria escrever sobre Salazar mas interessava-me a forma ideológica como o salazarismo se apropriou das mentalidades. É, nesta medida, um livro sobre quotidianos, sobre como agem as pessoas comuns longe das liturgias políticas e como se relacionam sob a omnipresença da ditadura.

Infocul (IFC) – Quando terminou de escrever este livro, quais as expectativas que tinha sobre o que pensariam as pessoas que a lessem?

Francisco Moita Flores (FMF) – Julgo que a maioria dos meus leitores vai ser surpreendida pela ruptura em relação à produção anterior. Porém, não se vão sentir traídos. Embora seja um género literário diferente, o Moita Flores está lá metido do princípio ao fim.

Infocul (IFC) – Quais as reacções que já teve sobre “O Mistério do Caso de Campolide”?

Francisco Moita Flores (FMF) – Ainda muito poucas. A distribuição do Mistério do Caso de Campolide tem três/quatro dias de banca de vendas. No entanto, as poucas pessoas que conseguiram ler, ficaram encantadas e enviando-me parabéns. Sobretudo pela surpresa de me verem a escrever um policial que, reconheço, obedecendo à técnica do policial é muito mais do que a história da descoberta do crime.

Infocul (IFC) – Já teve alguma reacção politica?

Francisco Moita Flores (FMF) – Como lhe disse, ainda é cedo. O livro saiu há dias. Mas nunca tenho grandes reacções do mundo da política. Em regra os nossos políticos não são grandes leitores.

Infocul (IFC) – O seu percurso politico e enquanto escritor é conhecido. Do contacto que vai tendo com o público, qual é a opinião que considera que existe sobre si?

Francisco Moita Flores (FMF) – A política foi um episódio datado. Começou e acabou. No que respeita à opinião sobre mim, confesso que não sei muito. Sinto estima e afecto à minha volta, coisa que me sabe muito bem. Sinto a vontade dos leitores e dos telespectadores à espera dos meus trabalhos. Tudo isso sabe bem.

Infocul (IFC) – Para Francisco Moita Flores, qual a importância histórica do caso de Campolide e o que podemos retirar dele?

Francisco Moita Flores (FMF) – Para mim foi importante. Foi um desafio que me deu muito trabalho. E também muito prazer. O romance policial obriga a um esforço que habitualmente se desvaloriza. É injusto. Não sei se voltarei tão cedo a este território literário. Talvez volte depressa. Não sei. Fiquei fascinado pela época em que contextualizo a acção. Aliás, já a tinha visitado quando, há alguns anos, escrevi a série A Raia dos Medos para a RTP. Continuo a estudá-la com afinco. Vejamos o que daqui sairá em termos literários.

Infocul (IFC) – Com o ‘evoluir’ da sociedade sente que os valores como a educação, a lealdade, a verdade, o respeito e a liberdade são melhor executados e valorizados? Ou estamos a caminhar para um caminho perigoso em que há valores que se estão a perder?

Francisco Moita Flores (FMF) – Não podemos confundir as relações de poder, conspurcadas, cínicas, egoístas com o País. Inacreditavelmente a política tem construído uma mundo à parte dos cidadãos. O grande desafio que se nos coloca é com o tempo. Acelerámos o tempo, a cibernética contraiu o espaço, desvalorizámos a presença material dos corpos, substituídos cada vez mais pelo mundo virtual e as redes sociais, que enviam muitos beijos mas não os dão, muitos abraços e ninguém se toca, muito amor encriptado nos milhares de bonecos que invadem as redes sociais. Estamos no início de uma nova Idade. Com desafios que ainda estão por perceber. Falta uma nova filosofia que nos ajude a interpretar o novo real(virtual) que está a emergir.

Infocul (IFC) – O mundo é um bom lugar para se viver, actualmente?

Francisco Moita Flores (FMF) – É um bom lugar para viver. Não existe outro e a vida só faz sentido aqui. Existem ameaças, algumas delas ainda sem resposta e outras sem resposta global. Porém, estou convicto que novas gerações mais conscientes vão superar os riscos que hoje enfrentamos no domínio do clima, da água, da floresta. Foi sempre assim. Evoluímos incrementando progresso e conforto e, por outro lado, enfrentando novos riscos. Sou um optimista activo no que respeita ao futuro e um pessimista no que respeita aos nossos próprios dias.

Infocul (IFC) – É um homem informado. O que o atormenta ou preocupa actualmente?

Francisco Moita Flores (FMF) – Atormenta-me, e inquieta-me, a decadência do País. A desertificação do interior, a regressão da natalidade, a desigual distribuição da riqueza. Portugal está cada vez mais pobre, mais velho, mais incapaz. Existem bolsas de desenvolvimento. Porém, dois terços do País estão à míngua. Na pobreza, na solidão, envelhecido. Este é um desafio que já devia ter sido enfrentado antes da catástrofes dos incêndios o ano passado. Mas nem os incêndios e a tragédia ensinaram alguma coisa a quem nos governa.  Decretaram medidas avulsas. Um punhado delas. Porém, a requalificação e modernização do interior está ainda à espera de inteligências lúcidas que olhem para lá do imediato.

Infocul (IFC) – O que ainda quer fazer em termos literários e políticos?

Francisco Moita Flores (FMF) – No que respeita à política não quero fazer rigorosamente nada. Confesso que se houvesse eleições hoje não conseguiria escolher. Votaria em branco. Tudo se tornou táctico, sonso, cinzento e medíocre. Não existe um único debate sobre problemas sérios. Tudo comprometido em nome do imediato, dos votos, dos poderes pessoais. Não me interessa. Em termos literários, há um rio de palavras a correr dentro de mim. Cheguei à idade madura. No horizonte já vejo o meu entardecer. Porém, cresce o ânimo, a cada dia que passa, para contar as histórias que me habitam. E são tantas!

Infocul (IFC) – Actualmente conseguimos viver com plena liberdade?

Francisco Moita Flores (FMF) – Não existe a Liberdade absoluta. Só a Morte nos liberta. Por outro lado, e um pouco na linha marxista de Paul Lafargue, a primeira das liberdades é a liberdades dos feijões. Se há fome não existe liberdade. Depois, recordo Hannnah Arendt, a exigente liberdade de pensar. De saber pensar. De libertar o sentido crítico da razão. Não existe Liberdade. Existem etapas interiores e exteriores de Liberdade.

Infocul (IFC) – Sei também que é um homem  de tradições e que por exemplo a tauromaquia é uma das artes que gosta, entre outras. Como assiste a toda esta questão de existir municípios a impedir corridas de touros e dos movimentos anti-taurinos serem cada vez mais ‘ruidosos’ na sua luta?

Francisco Moita Flores (FMF) – É um choque cultural entre que possui memórias rurais e quem vive o quotidiano urbano, desenraizado, revestido de uma razão inebriada. Não dramatizo essa questão. No quadro da liberdade e da tolerância, todas as acções são aceitáveis, desde que protegidas por lei.

Infocul (IFC) – Sente que o público que não gosta de tauromaquia, se deve a ser pouco informado sobre a mesma?

Francisco Moita Flores (FMF) – A tauromaquia aprende-se com a vida. Com o conhecimento da vida dos outros. com a vida dos campos. Com o próprio estudo das Civilizações. O touro é símbolo icónico e transcendente desde a Antiguidade. O fascínio pela força, pelo confronto, pela lide que pede à inteligência vença a força brutal, concentra no espectáculo tauromáquico aquilo que é o viver de cada ser humano.

Infocul (IFC) – Quem é o cidadão Francisco Moita Flores e o que gosta de fazer?

Francisco Moita Flores (FMF) – A minha primeira paixão são os livros. Sou viciado em leitura. Por isso, gosto do recolhimento. Depois, julgo ser (faço os possíveis para ser) um homem tolerante, embora impiedoso com a ignorância involuntária, com a iliteracia petulante. Julgo que um bom debate de ideias vale mil discursos engravatados. Vivo o prazer intenso de ver crescer os meus netos e testemunhar a caminhada dos meus filhos pelo Mundo. O teatro e o cinema ocupam-me. A música faz parte da minha vida. E tranquilidade de quem já muito andou.

Infocul (IFC) – Qual a mensagem que gostaria de deixar aos leitores do Infocul?

Francisco Moita Flores (FMF) – Deixo-vos um abraço fraterno. Leiam. Leiam muito. Cada livro que por nós passa, é um passo a caminho da Liberdade.

Rui Lavrador

Iniciou em 2011 o seu percurso em comunicação social, tendo integrado vários projectos editoriais. Durante o seu percurso integrou projectos como Jornal Hardmúsica, LusoNotícias, Toureio.pt, ODigital.pt, entre outros Órgãos de Comunicação Social nacionais, na redacção de vários artigos. Entrevistou a grande maioria das personalidades mais importantes da vida social e cultural do país, destacando-se, também, na apreciação de vários espectáculos. Durante o seu percurso, deu a conhecer vários artistas, até então desconhecidos, ao grande público. Em 2015 criou e fundou o Infocul.pt, projecto no qual assume a direcção editorial.

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