Severa- O Musical: Saberá o público reconhecer a grandiosidade deste espectáculo?

 

 

Severa- O Musical. Este é o espectáculo em cena no Teatro Politeama, em Lisboa, com o selo de Filipe La Féria. Estivemos na primeira representação deste espectáculo, com Anabela interpretando Severa. Regressámos ontem, desta feita com Filipa Cardoso interpretando a ‘Mãe do Fado’, como é por muitos considerada, Maria Severa Onofriana.

La Féria pensou, criou, encenou e tem em palco uma verdadeira obra-prima. Filipa Cardoso é Severa Onofriana e acabamos por em vários momentos perceber que ambas se fundem. A personalidade artística de Filipa Cardoso, de quem já escrevi várias vezes, funde-se com várias características que conhecemos de Severa.

A mistura é explosiva e Filipa Cardoso acaba por ter o papel da sua vida. Uma mulher do povo, com o coração junto da boca e de raça e força inquebrável. Filipa Cardoso, a quem em tempos intitulei de ‘Vendaval de Fado’, demonstra que por mais ensaio que haja, nada substitui a sensibilidade e talento natural a que podemos chamar verdade! A mulher que chora a fatalidade do Fado e que alegra exacerba e alegremente com a sua marcha do Alto do Pina, eleva Severa a um patamar único, neste espectáculo arrebatador!

La Féria tem o mérito de enquadrar, epicamente, a história de Severa na Guerra Civil que dividiu Portugal entre liberais e absolutistas.

Esta guerra é encabeçada, na peça, pelo Conde Vimioso e D. José (Bruno Xavier e Ricardo Soler, respectivamente), amigos boémios que se separam pelos seus ideais, acabando D. José por ser morto pelo Marialva.

Bruno Xavier que tem uma interpretação irrepreensível. A interpretação física e vocal é de grande qualidade e potenciada pela sua elegância e beleza natural. Uma interpretação difícil se tivermos em conta que estamos a falar de um toureiro, integrante da nobreza. Embora questão da tauromaquia seja abordada de forma clara, limpa e elegante neste espectáculo, baseando-se na apoteose do povo para com a figura do Marialva.

Ricardo Soler é das melhores vozes nacionais. É um facto, sem qualquer objecção possível. Neste espectáculo não deixa créditos em vozes alheias e destaca-se naturalmente. Mas a interpretação mais assombrosa é de Filipe Albuquerque, enquanto Custódia. O mendigo é apaixonado por Severa e luta por cada migalha da sua atenção, mas Filipe tem uma interpretação estratosférica, comovente e arrepiante. Quer enquanto actor, quer como cantor.

E o que dizer do narrador de toda esta história? Almeida Garrett, por Carlos Quintas, que passeia uma eloquente e poética linguagem?

Mas um dos grandes méritos que pode, e deve, ser atribuído a La Féria é a capacidade de colocar o individual ao serviço do todo, permitindo que numa performance extraordinária colectiva, haja destaques individuais.

Impossível não destacar ainda as personagens Mangerona e Marcolina (donos da taberna), Romão (um alentejano negociador de cavalos), Malhada e Gabriel (ela uma empregada com tuberculose e ele um escravo negro), Timpanas (cocheiro mais famoso de Lisboa), Marquesa de Seide (que tem adúltero caso com o Conde) ou ainda D. Maria II (rainha de Portugal).

Um espectáculo no qual existem poucos adereços de cena e cenários, destacando-se duas escadas gigantes que se vão transformando ao longo da narrativa que sai valorizada por uma movimentação inteligente, ritmada e com um desenho de luz que cria diferentes tonalidades emocionais, atmosferas e espaços.

Não existindo momentos sem interesse, há uns que merecem realce como a batalha entre absolutistas e liberais; o arrojo do Marialva em levar Severa a um baile nobre, permitindo assim que pela primeira vez o Fado chegasse à elite; ou ainda a morte da Severa. Um musical no qual La Feria coloca o povo no centro da acção e ao mesmo tempo junta dois universos dispares: a nobreza e os seus palácios e o povo e as tabernas.

Se o povo relembra Severa como prostituta, deixo a sugestão para que pensemos nela como mulher de coração grande, protectora dos mais discriminados, com sentido de justiça e amor incomuns mesmo à época.

A música conta com nomes como Miguel Amorim, Jorge Fernando e La Féria e é dos pontos a destacar pela excelência pelas letras, arranjos, orquestração e composição. Neste espectáculo peca talvez por não existir orquestra ao vivo e os coros serem gravados, mas aí será mais uma questão de gosto do que qualitativa.

Se Júlio Dantas a deu a conhecer na Literatura e Leitão de Barros a potenciou no Cinema, Filipe La Féria entrega-a ao público pela mais nobre das artes: o Teatro!

Temos, enquanto povo, o péssimo hábito de gabar o que vem de fora e esquecer o que temos cá dentro. Este espectáculo teria lugar em todas as grandes salas mundiais. Portugal tem a sorte de o ter no Politeama. E numa época em que todos falam do futuro, La Féria dá a história ao povo. Porque não há futuro sem história. Cabe ao povo permitir que este espectáculo se prolongue por muito tempo em cena. E que merecido seria!

Texto: Rui Lavrador
Fotografias: João de Sousa


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