Buba Espinho apresenta o segundo disco: “É muito mais um álbum autobiográfico, um disco muito mais interno da minha parte”, disse.
Texto: Rui Lavrador
Fotografias: Promoção Buba Espinho
Hoje é editado o segundo disco de Buba Espinho. Chama-se ‘Voltar’ e é um dos melhores discos do ano, relativamente à música portuguesa.
Bernardo, nome de nascimento de Buba, esteve à conversa com o Infocul.pt e falou sobre a importância deste disco, da mensagem que pretende passar e também sobre o seu crescimento enquanto homem e músico.
A conversa será publicada em duas fases. Hoje sairá a primeira, em que se aborda mais a questão do disco e da vertente profissional. Amanhã sairá a segunda parte, que aborda o âmbito mais pessoal de Bernardo Espinho.
O disco conta com 8 faixas, sendo duas delas duetos. Um com Bárbara Tinoco, outro com Os Bandidos do Cante.
O disco é co-produzido por Bernardo e Eduardo Espinho, contando com letras de artistas como Agir, Bárbara Tinoco, Paulo Abreu Lima, Diogo Clemente, Guilherme Alface, Edu Mundo, Gonçalo Narciso ou Faro.
Todo o disco é muito homogéneo naquilo que são as canções que nele constam, com o ouvinte a poder viajar por várias paisagens metafóricas e emocionais, ao mesmo tempo que Buba demonstra uma maturidade e leveza que até então ainda não tinha exposto de forma tão segura. O piano assume destaque e perceberá o porquê na 2ª parte da conversa.
Buba é um dos nomes que carrega em si a responsabilidade da preservação da música tradicional portuguesa, acreditando eu que o fará com qualidade, a mesma que denota desde tenra idade.
A título pessoal permitam-me destacar dois temas: ‘A folga do Arlequim’ e ‘ Um dia hei de voltar (com Os Bandidos do Cante). Este segundo tema é absolutamente extraordinário e foi interpretado no Coliseu, aquando do concerto de D.A.M.A. & Buba Espinho e amigos.
Amanhã, realiza-se o concerto de apresentação do disco, no Capitólio, em Lisboa e os bilhetes podem ser comprados AQUI.
Entrevista de Rui Lavrador a Buba Espinho (1ª parte)
Porquê ‘Voltar’?
‘Voltar’ porque esse verbo fez sempre muito parte da minha vida. Meti na cabeça que nunca seria uma pessoa de um só sítio. Para isso acontecer, tens sempre de partir para vários sítios, sempre com o intuito de voltar. Assumindo que voltas uma pessoa diferente. Foi sempre isso que quis para a minha vida, alargar a minha zona de conforto, ir conhecer outras culturas, ter outras experiências, sentir outras energias na forma de viver. Foi isso que quis quando fiz a minha mudança aqui para Lisboa. Estamos apenas a 1h30 de distância, mas a vida é muito diferente. Mas voltar, diferente, sempre com coisas novas na bagagem para aplicar na minha vida e nos meus amigos. São essas pessoas que se mantêm no lugar onde volto agora. O verbo voltar é mesmo muito importante para mim, porque sempre que vou a algum lado é com o intuito de deixar uma boa marca, mas sempre com o desejo de voltar.
Foste sempre muito defensor e até promotor da região Alentejo, de onde és natural. O que é que a passagem por vários outros locais te trouxe na forma como vês o Alentejo?
Deu-me uma visão de que nasci no melhor sítio do mundo, tive a melhor infância que podia ter, com uma componente de identidade muito forte, não conheço nenhum alentejano que não tenha orgulho em ser alentejano, de sentir a terra como a sentimos, de valorizar e preservar os valores dos nossos antepassados. Acho que essa energia é mesmo muito forte no Alentejo. Quando vou para outros sítios, já fiz algumas digressões lá fora, esta mais recente por exemplo na América do Sul, em que a realidade é muito diferente da europeia, da que temos aqui no nosso país, aí sim dou cada vez mais valor ao que somos enquanto povo, mas também na componente musical. É realmente extraordinário o que temos na nossa região, o facto de juntares 30 ou 40 homens e todos cantarem a uma só voz, apenas com o objectivo de homenagearem o sítio onde nasceram e os seus antepassados acho que isso é mesmo muito especial. Claro que deve existir outras energias em outros sítios muito semelhantes a esta, mas eu sendo alentejano, obviamente que para mim esta é muito específica e muito especial. E quando fui para outros locais, consegui ver a minha região com outra perspectiva e valorizá-la ainda mais.
A primeira vez que falámos, tinhas saído ainda muito poucas vezes do Alentejo. Apesar de simpático e afável, eras muito tímido. Sentes que todas essas viagens que foste fazendo, permitiram-te libertar, não direi do receio, mas da timidez que outrora apresentavas, e mostrares mais quem é o Bernardo?
Sim, o Bernardo (é uma pessoa diferente) [risos]. É uma pergunta interessante. Creio que essa timidez era também um pouco de insegurança, porque pensava ‘será que isto que estou a fazer, faz sentido?’, ‘será que isto de pegar nas tradições é algo actual e as pessoas se identificam?’. Claro que essas dúvidas existiam e não era uma certeza como a que tenho hoje. As pessoas perguntam-me sempre como é isso de eu sendo jovem pegar nas tradições e se isso é uma estratégia. Para mim não é uma estratégia, porque foi sendo algo que aconteceu sempre naturalmente. O cante alentejano era algo que estava cá dentro e eu simplesmente cantava porque gostava e os meus amigos também cantavam. Depois há uma altura em que começo a ter a certeza de que aquilo que estava a fazer era certo, aí obviamente que fico mais seguro, mais solto, como dizes, mas foi um processo natural e que me fez chegar aqui, sendo a pessoa com quem estás a falar agora. Um bocado menos tímido, talvez, mas com os mesmos objectivos.
Creio que podemos pegar aqui também na vertente histórica, porque recordas-te certamente que, antes de ser elevado a Património Imaterial da Humanidade, o cante era visto por várias frações da sociedade como a canção dos bêbados, de tasca e de final de noite. Além de que ao longo de muito tempo, o povo alentejano foi sendo sempre muito ostracizado e alvo até de anedotas, quase sempre pejorativas. Sentes que o facto de o Cante primeiro ter sido valorizado lá fora, com a elevação a Património Imaterial da Humanidade, e o facto de depois as pessoas perceberem que o Cante dava a conhecer muito daquilo que era a história do Alentejo, acabou por mudar a mentalidade das pessoas e perceberem finalmente aquilo que na realidade é o Alentejo, os Alentejanos e o Cante Alentejano?
Obviamente que com a elevação do Cante a Património Imaterial da Humanidade houve uma mudança. Mas para nós que já tínhamos a noção do que era o Cante, começámos a ter essa noção antes de ser elevado a Património Imaterial da Humanidade. Quando começaram a aparecer grupos de jovens, como os Bubedanas que falaste à pouco, mostrando que aquilo que era considerado uma canção de bêbados e de velhos, conquistaram os miúdos. Aparecerem miúdos de 16/17 anos a cantarem Cante Alentejano…
Que não estão bêbados… [risos]
Nessa altura ainda não estavam… [risos] Porque depois, os Bubedanas foi mesmo real. [risos]. Acho que esse foi o ponto de mudança, principalmente para as mais novas gerações, que como sabes tem sempre muita influência naquilo que é tendencioso. Obviamente que para as crianças alentejanas olharem para a televisão, rádios, Youtube, etc, e verem jovens da mesma idade a fazerem o que eles sempre gostaram de fazer, mas que sempre tiveram vergonha, eu acho que isso deu uma certa abertura aos mais jovens. Os mais velhos ao verem os mais novos, penso que também sentiam aquela saudade de quando saíram do Alentejo, de quando eram miúdos. Sinto, por exemplo, que lá fora há um sentimento mais forte. Ou até mesmo aqui na margem sul. Quando estava nos Bubedanas, mais de metade dos nossos concertos eram aqui na Margem Sul, pelo facto de a comunidade alentejana estar ali muito centrada…
Uma espécie de Alentejo Norte… [risos]
Sim, sim. Tu vais ali a qualquer café na Baixa da Banheira e ouves alentejano. Creio que o facto de os jovens pegarem no cante alentejano é o ponto de mudança. Depois o reconhecimento a nível mundial fez um clique nas pessoas. Mesmo aquelas pessoas que não olhavam para o cante da mesma forma ficaram a pensar ‘se calhar sou eu que estou errado, o cante é algo mesmo muito especial’. O cante é algo mesmo muito nosso. Fez os Alentejanos orgulharem-se ainda mais de serem Alentejanos.
Vens de uma base de Cante Alentejano. Depois quando começas a ter algum mediatismo colocam-te duas ‘etiquetas’: Fado e Cante. Mas neste disco é tudo muito mais abrangente e arrisco dizer que não se podem engavetar em que qualquer categoria. Este disco é a identidade Buba, que por sua vez tem várias influências…
Sim, fico muito feliz por dizeres isso. Não tenho problema nenhum que me coloquem a etiqueta do Fado ou do Cante Alentejano. Não há mesmo problema nenhum, porque eu gosto de Fado e de Cante. Inclusivamente já me viste em vários concertos com formatos distintos. Já me viste com acompanhamento de guitarra portuguesa, viola e baixo [mais para o Fado] da mesma forma que já me viste a cantar à capella [mais para o Cante]. Mas este segundo disco é o Buba de alma aberta. O primeiro disco é aquilo que o Buba gosta e onde gosta de se mover. Aqui neste disco, abro mais o meu coração, falo mais sobre mim do que sobre aquilo que me rodeia. Eu falava muito dos meus pais, do Alentejo, dos meus amigos, das casas de Fado. Aqui, neste disco, falo de mim, dos meus sentimentos e da importância deles na minha carreira. É muito mais um álbum autobiográfico, um disco muito mais interno da minha parte.
Neste disco tens muita malta nova mediática a escrever. Mas permite-me destacar uma pessoa, que infelizmente já não está entre nós, o Paulo Abreu Lima. Porquê a escolha deste tema?
[Buba arrepiou-se assim que ouviu o nome de Paulo Abreu Lima] Olha, como vês, o corpo reage logo. O Paulo foi uma pessoa muito importante na fase em que eu queria sair de Beja e não havia pessoas com quem eu me identificasse, que acreditassem naquilo que eu estava a dizer: quero sair daqui e quero ir fazer música. Para os meus amigos que estavam a entrar na universidade, aquilo não fazia sentido nenhum. Para a minha mãe que queria que eu tirasse um curso, não fazia sentido nenhum. Para o meu pai fez todo o sentido, porque ele é músico. Mas tive sempre essa liberdade. E o Paulo foi a pessoa fora da família, onde encontrei um porto de abrigo. Assim que tomei esta decisão, ele fez questão de no dia a seguir enviar-me uma letra, sobre o que eu estava a sentir. O Paulo tinha muito essa capacidade de expressar, aquilo que nós não conseguíamos, através de letras. Eu falava com o Paulo e ele quase um tradutor daquilo que eu estava a dizer. Este tema, ‘Hoje é o dia’, foi o último tema que o Paulo me enviou, meses antes de falecer. Para mim, o poeta nunca morre e eu quero continuar a cantá-lo, a registá-lo, porque é assim que o faremos ainda mais eterno. Fiz questão de musicar este tema que ele fez para mim com tanto amor, sendo uma pessoa que estará para sempre presente na minha vida.
Espero que o vasto espólio dele possa ser dado a conhecer ao grande público e de preferência valorizado.
Neste disco, tens um dueto com a Bárbara Tinoco, aliás é o primeiro single, e pergunto como surgiu esta parceria?
A Bárbara enviou-me uma mensagem a dizer que tinha uma canção que fazia sentido ser gravada comigo, eu ouvi a canção e foi amor à primeira vista. Porque, como te disse há pouco, fez-me lembrar a minha infância muito feliz, fez-me recordar as minhas avós, os verões enormes e o sentimento de quando o verão acabava, o que ficava para trás e o que estava para vir. É uma canção muito visual para mim. E as imagens que tenho de miúdo associaram-se muito às imagens que criei ao ouvir a letra desta canção. Foi algo que me fez logo muito sentido. Depois, acabámos por não gravar no disco dela. Passou a canção para as minhas mãos e disse para eu fazer o que quisesse. Para mim fez-me logo sentido gravar com ela, porque a canção tem uma identidade muito própria e é muito dela, foi um desafio pegar nas melodias dela e nas letras dela e poder cantar. Sabes que isso é um desafio que gosto muito, pegar nas outras personagens e vesti-las à minha maneira. E tem sido um caminho muito bonito, e admiro a Bárbara pelo foco e talento que tem.
Neste disco tens outro dueto. Trata-se de um dueto com uns rapazes que ganharam notoriedade com os concertos nos Coliseus de D.A.M.A. e Buba Espinho. São os ‘Bandidos do Cante’. Quem são estes rapazes e como surgiu a vossa ligação?
São um projecto incrível e que acho que vai valorizar ainda mais o cante alentejano. São cinco vozes incríveis, cinco grandes músicos, cinco grandes amigos. O Luís é meu amigo desde o berço, todos os restantes elementos são um pouco mais novos que nós, mas são todos da nossa zona e conhecemo-nos há muito tempo: O Duarte Farias, o Francisco Raposo, o Francisco Pestana e o Miguel Costa. Nos últimos dois a três anos, sempre nos acompanhámos uns aos outros nos espectáculos, eu convidava-os para virem cantar, eles já me convidam para ir aos espectáculos deles. Como não gosto de fazer as coisas sozinho, quando estávamos a preparar os concertos nos coliseus, houve a possibilidade de eles virem connosco. Não como representação do Buba, mas como representação de um projecto. Na altura nem sequer existia o nome, foi criado depois disso. É um projecto mesmo muito interessante e quando gravei este álbum só me fazia sentido gravar com eles. Têm feito parte da minha bolha, eu para este disco fechei-me muito, apenas com pessoas de confiança e familiares, e eles fizeram parte dessa bolha onde encontrei inspiração e tranquilidade para o fazer. São meus amigos e conhecem-me como ninguém.
Olha, já nos conhecemos há uns anos valentes e eu tenho uma provocação para ti.
Gosto disso, diz…
No concerto no Coliseu de Lisboa, dos D.A.M.A. contigo, um dos elementos dos D.A.M.A. disse que tu afirmaras, aquando da pré-produção do tema ‘Casa’, que todos os teus amigos sabiam cantar. A minha pergunta é simples, quem não saiba cantar não pode ser teu amigo?
[risos] Pode claro, tem é de ficar um bocadinho mais afastado e não me cantar aos ouvidos [risos].
Podes sempre dar umas aulas…
Não, não! Depois se ele não aprender, a culpa é minha [risos]. Obviamente que há mais com que identificarmo-nos com uma pessoa que saiba cantar, do que com uma pessoa que não saiba cantar. Mas está tudo certo [risos].
Olha, falando um pouco mais sério. Nos últimos anos o Alentejo tem revelado muitas pessoas com talento acima da média para a música e para a arte em geral. Como justificas que esta região tenha tanta gente com esta sensibilidade?
É uma excelente pergunta. Tenho pensado muito nisso e já vou encontrando algumas respostas. Sinto que tem a ver com o crescermos em comunicado. Sinto isso por exemplo na minha cidade, que é muito pequena como sabes, há 3 escolas secundárias que junta com as primárias e então quase toda a gente cresce em conjunto, todos conhecem todos. Há um conceito de viver em comunidade muito forte e obviamente que depois tu e os teus amigos fazem aquilo que gostam. Nós começamos a cantar desde muito cedo. Dou sempre o exemplo dos miúdos das grandes cidades, que têm contacto com a música através do Spotify, fechados nos seus quartos, a tocar a sua guitarra. E depois obviamente que há um pulo muito grande quando há o contacto com o público. O contacto da avaliação. Sinto que é uma coisa mais complicada para quem não tem esse à vontade. Nós começamos a cantar em miúdos, em mesas cheias de gente, em restaurantes, com muitas pessoas a assistir. Portanto, desde miúdos que temos esse contacto muito próximo. Eu acho que existe o mesmo talento que existe em outras zonas do país, mas nós somos expostos ao público desde muito cedo, ao cantar em público.
Há um desenvolvimento mais rápido e até mais acompanhado…
Sim, sim. Como é um canto colectivo, vais crescendo em conjunto, vais sendo corrigido, do género ‘não devias cantar com tanta intensidade’ ou ‘ estás a desafinar aqui um bocado’. Trabalhamos muito colectivamente, não é apenas aquela questão de estares fechado na tua bolha, com a tua guitarra, em que só ouves o teu pai ou a tua mãe a dizerem se gostam ou não da canção. E no Alentejo acho que temos esse à vontade com o público porque cantamos quando queremos e em qualquer circunstância. É algo natural para nós. Obviamente que chegar a um palco tem outra responsabilidade, mas parece que já passámos algumas etapas quando chegamos pela primeira vez ao palco.
Amanhã [dia 16 de Setembro] actuas no Capitólio, em Lisboa. Não irás só apresentar os temas do novo disco?
Não.
Terás convidados?
Talvez sim, quem sabe? Pode ser que sim…
Os que estão no disco?
Pode ser que sim. [risos]
Alguns que não estão no disco?
Pode ser que sim também [risos]. Vamos ver o que vai acontecer. O foco está em apresentar as canções deste disco, mas também as canções que me têm acompanhado ao longo dos anos, as canções do primeiro disco, canções que gravei com outros projectos. Cantarei temas de outros artistas que é algo que ultimamente me deu dado muito gozo, ouvir canções de outros artistas e ligar-lhes a perguntar se as posso cantar. Isso faz parte da partilha.
Algum te disse um não?
Nunca ouvi um não, mas já senti um desconforto. E automaticamente percebo que há quem não goste e respeito. Não gosto de me fechar apenas naquilo que é o meu conceito, gosto de vestir outros personagens.