O Festival Terras sem Sombra teve o seu melhor concerto, desta edição e até ao momento, em Serpa, com a cantaora de flamenco Esperanza Fernández que convidou também o Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento.
Sobre Serpa existe um aforismo com centenas de anos que revela “Serpa serpente, boa a terra má a gente”, contudo os corais alentejanos emendam e dizem “Boa terra, melhor gente”. A segunda versão parece-nos claramente a mais indicada para uma localidade que faz da arte de bem receber, bem servir, e da transmissão de emoções, algumas das mais importantes características a quem visita Serpa.
No passado fim-de-semana o Festival Terras sem Sombra, assentou arraiais em Serpa com uma visita ao Património Histórico, um concerto com a cantaora de flamenco Esperanza Fernández com participação do Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento e depois uma acção de biodiversidade na Serra de Ficalho.
No Sábado, pela tarde perante um sol de verão, o destaque maior da visita foi o Palácio dos Condes de Ficalho. Este monumento foi mandado construir por D. Francisco de Melo, que foi alcaide-mor de Serpa no século XVI. Esta obra foi iniciada pelo alcaide-mor e prosseguida pelos seus filhos: D. Pedro de Melo e D. António Martim de Melo. Tem ainda a curiosidade da sua localização, sito no pano das Muralhas de Serpa. O edifício classifica-se como “um exemplar erudito da arquitectura civil maneirista, delineada de acordo com os princípios classicistas da tratadística italiana do século XVI” segundo a Direcção Geral do Património Cultural (DGPC).
A DGPC acrescenta ainda que “A fachada principal, divida em dois pisos, apresenta uma estrutura maneirista austera, de grande sobriedade, destacando-se o desenvolvimento longitudinal da planimetria e a simetria das fenestrações e portas, que marcam o ritmo do edifício. A fachada posterior é um dos elementos mais interessantes da edificação. Integrada no pano das muralhas, apresenta-se também dividida em dois registos, tendo sido edificadas no piso inferior janelas de sacada, semelhantes às do piso nobre existentes na fachada principal. É rematada por cornija com gradeamento de ferro apoiado em balaustrada.
Interiormente, o palácio é dividido em salas amplas, intercaladas com galerias, cuja estrutura simples e austera se conjuga com a sobriedade exterior. O piso térreo, destinado sobretudo às áreas de serviço, apresenta ao centro uma larga escadaria que dá acesso ao andar nobre. Muitas das salas e galerias do andar nobre são decoradas por silhares de azulejos seiscentistas”.
Durante a visita, que se iniciou na Praça da República, foram centenas as pessoas que acorreram a esta actividade. Serpa foi a prova que as visitas ao Património Histórico das localidades por onde o festival passa são uma aposta já ganha tal a quantidade de público que a elas adere. Estas visitas são também importantes porque permitem ao público, de forma gratuita, visitar espaços que por norma não estão acessíveis diariamente.
À noite, tempo mais fresco embora agradável para acolher o furacão Esperanza Fernández que trouxe Agnus Dei, o Kyrie ou o Cordero de Dios como representantes da música mais religiosa, complementando o seu alinhamento com poesia de José Saramago, a quem também já tinha dedicado o seu disco, “Mi voz en tu palabra”.
Esperanza conseguiu com o seu canto profundo, de timbre peculiarmente belo e de linguagem corporal sóbria mas que vincava o poder das palavras cantadas, revisitar a herança espiritual de Sevilha, partindo do canto jondo. Ao longo do espectáculo foi falando ainda sobre as suas raízes ciganas complementando com o canto da tradição. Em palco teve um genial guitarrista Miguel Ángel Cortés que foi a rede para o voo seguro do canto flamenco e profundo de Esperanza e na percussão e palmas contou com Jorge Pérez “El Cubano”, Dani Bonilla e Miguel Junior. O público não soube em alguns momentos ter o comportamento mais correcto. O Flamenco quando cantado é algo profundo, intenso e é necessário silêncio para se poder apreciar na plenitude toda a sua beleza.
O espectáculo contou com forte presença de público na Praça da República sendo que também Serpa foi excepção no Terras sem Sombra, pois por norma os concertos do festival ocorrem em igrejas. Mas se Esperanza Fernández já tinha levado o espectáculo para um patamar de enorme qualidade, o Rancho de Cantadores conseguiu elevar um pouco mais a fasquia.
O Rancho e Esperanza cantaram em conjunto a moda “Limoeiro”, tendo depois os cantadores cantado a solo “Pomba Branca”, “O Meu chapéu” e rematado a sua actuação com “Dá-me uma gotinha de água”.
Num espectáculo com um alinhamento bem conseguido, trazendo outros géneros a complementar a clássica música sacra/erudita, Serpa foi palco de emoções, porque este é também um festival que tem no seu ADN: o amor, a partilha, a amizade, a solidariedade, a paixão que são resultado do esforço, da dor e da luta dos seus responsáveis.

Texto: Rui Lavrador
Fotografias: João de Sousa
Video: Ana Silva
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