‘Comer bem à moda dos Açores’ de Rúben Pacheco Correia: “Esta é a minha carta de amor à minha terra”

Contraponto

Comer à moda dos Açores’ é o mais recente livro de Rúben Pacheco Correia e também o motivo para entrevista que o autor nos concedeu.

Editado pela Contraponto, este livro conta com uma estrutura de fácil e cativante leitura, do início ao fim.

Rúben escreve com alma, mas acima de tudo com imensa paixão pela gastronomia e pelos Açores, e onde é natural.

Dá ao leitor, antes das receitas, introduções da história, geografia, produtos e gastronomia dos Açores, de modo a que o leitor se sinta perfeitamente enquadrado ao ler as receitas e a salivar-se com as extraordinárias imagens que as legendam.

Posteriormente, explica os lugares, tradições e festividades gastronómicas dos Açores. E agora, que o leitor já está devidamente informado e enquadrado, dá a conhecer as receitas dividindo-as em categorias: Entradas e Sopas; Peixes; Carnes; Sobremesas; Compotas; Pães.

Nesta obra conta ainda com depoimentos de várias personalidades da gastronomia. Destaca-se José Avillez, mas podemos ainda ler os Chefs Eneo Atxa, Benoît Sinthon, Maria Lawton e Helena Loureiro.

Em entrevista ao Infocul, Rúben Pacheco Correia falou sobre isto tudo e ainda sobre o seu lado mais pessoal e os estudos de direito que leva a cabo na Faculdade de Direito de Lisboa. Nasceu nos Açores (Ponta Delgada) em 1997, viveu desde sempre em Rabo de Peixe, tem 22 anos e é editado desde os seus 14 anos. É Obra!

Já com cinco livros editados, quando surgiu a ideia de escrever este?

Como sabe, nasci no meio de uma cozinha e esta minha paixão pela gastronomia é, de certa forma, inata. Sou publicado desde os 14 anos, mas a verdade é que a gastronomia, enquanto objecto crítico e até literário, só se despertou em mim aos 18 anos, quando abri o meu primeiro restaurante. Só a partir desta altura, deixei de ser passivo para ser activo no mundo da restauração e da gastronomia. Comecei, pois, a olhar para as coisas de uma forma diferente, mas sobretudo a valorizar ainda mais quem trabalha na área e a compreender melhor a minha família. Debrucei-me sobre os produtos da minha terra, numa pesquisa que iniciei há cerca de dois anos, e senti falta de uma obra de referência que homenageasse os saberes e sabores dos Açores. Foi aí que surgiu a ideia de escrever este livro. Não digo que esta é a obra de referência da gastronomia açoriana, porque não me cabe a mim fazer tais considerações, apenas posso dizer que esta é a minha carta de amor à minha terra e, neste sentido, o que pelo menos posso garantir é que aquilo que faço com e por amor faço-o bem.

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Sendo o Rúben natural dos Açores, pergunto como foi a selecção das receitas que aqui apresenta e se há alguma que tenha ficado de fora e que lamente?

Certamente ficaram imensas fora do livro. Não consegui fazer a compilação toda que desejava, sobretudo porque os Açores são 9 ilhas e naturalmente há ilhas com mais receitas do que outras e o meu objetivo foi, de facto, garantir a representatividade de todas as ilhas. Não obstante, creio ter conseguido fazer uma recolha significativa daquilo que somos em termos gastronómicos. Coloquei, pelo menos, as que mais gosto e as que melhor identificam a cultura açoriana. Pode ser que, no futuro, haja um novo volume com o que ficou em falta.

Hoje em dia há uma preocupação com aquilo que comemos. Sendo a comida uma fonte de felicidade (acho que todos gostamos de comer), não considera que andamos a dosear a felicidade das pessoas?

É uma questão muito interessante. É verdade que andamos, de facto, a dosear a felicidade das pessoas. Contudo, diz o nosso povo que “o que é demais enjoa”, pelo que talvez as doses são favoráveis ao apetite e estimulem a vontade de repetir. Até na música é assim: as pausas fazem parte da pauta. Creio que o facto de podermos dosear a magia de desfrutar de um bom momento gastronómico é saudável para o respeitarmos e desejarmos.

Há ideia de que comer bem é comer muito. Afinal, o que é comer bem e como saber que estamos a comer o que é bom?

Creio que seja muito difícil conseguir responder com clareza à sua questão. Felizmente, os gostos das pessoas variam e, talvez, comer bem para mim, ou pelo menos comer algo que me saiba bem a mim, pode não ter o mesmo resultado em si. É, também, uma questão cultural. Dizia Brillat-Savarin “diz-me o que comes, dir-te-ei quem és”. Na cultura de alguns povos, é intolerável comer algumas coisas que nós, na nossa cultura, apreciamos e vice-versa. Seja como for, creio que é transcendente a todas as culturas que comer bem não significa comer em quantidade. Estamos a melhorar neste aspecto. Há uns anos atrás, uma vez que a comida não era tão abundante como é hoje, comer bem significava comer em quantidade. Um bom restaurante era o que servia quantidades significativas. Hoje em dia as coisas mudaram.

Os Açores são também muito conhecidos pela sua grande carga religiosa e pela fé do seu povo. De que forma a fé e a religião influencia a gastronomia dos Açores?

A gastronomia está intimamente ligada à religião. Basta recordarmos alguns dos adágios alimentares mais conhecidos em Portugal: “comer como um padre”, por exemplo. Sobretudo na doçaria encontramos esta ligação. Os Açores não fugiram à regra. Muitos dos nossos doces nasceram em conventos. As Esperanças, por exemplo, do Convento da Esperança, onde repousa a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, as Queijadas de Vila Franca do Campo, que nasceram no Convento de Santo André, entre outros doces, são significativos disso mesmo. Mas também nas festividades religiosas, e falo disto no meu livro, encontramos sempre uma razão para se comer e beber. As Festas do Espírito Santo, com as famosas Sopas, os bolos de massas, os alfenins, as carnes guisadas e assadas, as alcatras, entre outros petiscos, são elementos que não podem faltar à mesa e que fazem já parte deste ritual.

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A sua relação com a gastronomia vem de família, composta por bons e boas cozinheiras, desde os pais aos avós. Qual a ‘lição’ mais importante que te ensinaram sobre gastronomia?

Correto. Sou neto e filho de cozinheiras e desde muito cedo fui ensinado a respeitar o produto e a valorizar quem dedica a sua vida à cozinha. A minha avó materna ensinou-me as bases da gastronomia dos Açores, enquanto a minha avó paterna e a minha mãe despertaram em mim o interesse em conhecer outros tipos de gastronomia, culturas e povos.

Frequentas a Faculdade de direito de Lisboa. Mas ultimamente tens apostado na gastronomia, inclusive como crítico gastronómico. Há quem não saiba bem o que é um crítico gastronómico. Afinal o que é um crítico gastronómico e quais as características que deve ter?

Eu não gosto de me auto-intitular como crítico gastronómico. Escrevo sobre gastronomia em geral e restaurantes em particular para uma revista com alguma assiduidade. A verdade é que, de forma natural, quer a revista quer as pessoas, começaram a denominar-me como crítico gastronómico. Contudo, para mim um crítico gastronómico é, no fundo, um gastrónomo, ou seja, um apaixonado por gastronomia. E como apreciador, e crítico, no meu caso de forma construtiva, no sentido de apurar e desejar, com a sua opinião e com o seu gosto, uma gastronomia cada vez melhor, cada vez mais rica.

Qual a linha, e como consegue, que separa o gosto pessoal da qualidade da confecção, enquanto crítico?

Mesmo que não apreciemos um determinado prato, conseguimos, inequivocamente, perceber se o produto foi respeitado. E para mim, como já disse, a qualidade da confecção está, sobretudo, em saber respeitar o produto, ou seja, não estragá-lo.

O Direito, A Escrita, A Gastronomia. Se apenas pudesse escolher uma paixão, qual seria?

Escolheria a escrita, uma vez que está interligada com as outras áreas. A escrita dá-me a possibilidade de poder emitir a minha opinião, na construção, diria eu, de um mundo mais justo que o Direito vem tentar construir; por outro, dá-me também a possibilidade de transformar em palavras o que o meu gosto, o que o meu paladar e o que os meus sentidos definem.

Além das atrás referidas, quais as restantes paixões de Rúben Pacheco Correia?

Gosto muito de música. Toco, de forma amadora, claro, alguns instrumentos, entres eles a guitarra e o acordeão. É outra forma de me exprimir. É ter a possibilidade de transformar em som o que sinto.

José Avillez descreveu-o, ao Rúben, como “trabalhador” e “apaixonado”. Este livro é a junção destas duas características?

Certo. Mas é, também, uma homenagem às gentes trabalhadoras dos Açores. E, desta forma, tal como diz o Avillez ao definir-me como “apaixonado”, é uma carta de amor à minha terra.

Qual a marca de cada uma das ilhas na sua gastronomia local? Ou seja, o que distingue a gastronomia das diferentes ilhas?

Ao ler o livro perceberá que é uma pergunta muito complexa. A gastronomia dos Açores é muito diversa na plenitude das suas nove ilhas. Contudo, é muito difícil dizermos “esta receita é desta ou daquela ilha”, porque há variações de uma só receita dentro da própria ilha. Ou o nome é diferente ou apenas difere de um ramo de hortelã para um ramo de salsa. As Sopas do Espírito Santo são um exemplo disto mesmo, tal como se poderá aprofundar ao ler o livro.

Se apenas pudesses escolher um único prato, dos que estão no livro, qual seria e porque motivo?

Chicharros fritos com molho de vilão e bolo da sertã. É um prato que me faz viajar no tempo. A minha bisavó, já falecida, fazia este prato imensas vezes e sempre que desfruto deste momento recordo-me dela. Leva-me de volta às minhas raízes, à minha infância, à inocência, mas também à sabedoria que me foi transmitida pela minha bisavó em termos de gastronomia simples, mas típica açoriana.

Vários consagrados, na área da gastronomia, deixaram mensagens neste livro. Qual a importância deste reconhecimento?

Este reconhecimento é, sobretudo, importante para a afirmação da gastronomia dos Açores no panorama internacional. Fico muito feliz por nomes como Eneko Atxa, três estrelas Michelin, segundo melhor restaurante do mundo em 2016, ter dedicado umas linhas a esta minha obra. Reflete, claro, a qualidade do livro, mas sobretudo o estatuto que os Açores começam a ganhar a nível internacional.

O que é que o rapaz que estuda direito diria ao crítico gastronómico?

Possivelmente o rapaz que estuda direito diria ao crítico gastronómico para não difamar nenhum restaurante, pois poderia estar a infringir o Artigo 180.º do Código Penal.

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Rui Lavrador

Iniciou em 2011 o seu percurso em comunicação social, tendo integrado vários projectos editoriais. Durante o seu percurso integrou projectos como Jornal Hardmúsica, LusoNotícias, Toureio.pt, ODigital.pt, entre outros Órgãos de Comunicação Social nacionais, na redacção de vários artigos. Entrevistou a grande maioria das personalidades mais importantes da vida social e cultural do país, destacando-se, também, na apreciação de vários espectáculos. Durante o seu percurso, deu a conhecer vários artistas, até então desconhecidos, ao grande público. Em 2015 criou e fundou o Infocul.pt, projecto no qual assume a direcção editorial.

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