À conversa com Carlos Leitão sobre “Sala de Estar”…

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Sala de estar” é o novo disco de Carlos Leitão em que o fadista lisboeta com alma alentejana junta vários convidados de indiscutível valor e classe. Este novo disco foi também o ponto de partida para uma entrevista no Clube de Fado, em Lisboa. 

 

 

Nasceu em Lisboa mas adoptou o Alentejo como seu. Foi jornalista mas o seu fado estava destinado a ser outro. Ainda bem. O seu canto é algo de incrivelmente belo e ao mesmo tempo simples, não deixando de trazer em si uma enorme complexidade. Confuso? Não. Basta ouvir Carlos Leitão para perceber que é dono de imensos recursos vocais, e também como instrumentista e letrista, que arrebatam qualquer um que se predisponha a ouvir e a sentir a(s) sua(s) mensagem(ns).  

 

O conceito nasce dias depois do lançamento do primeiro disco… nasce na minha cabeça, não nasceu em papel, não foi logo uma coisa amadurecida. A ideia nasceu!  Curiosamente o título do disco nasceu logo nessa altura” começa por nos revelar sobre o momento em que surgiu o conceito deste disco, que nos explicou de seguida, “acaba por ser, além de uma catarse, uma forma de eu me mostrar sem “sair de casa”, ou seja, o primeiro disco é um disco muito mais denso, mais difícil de entender. Talvez quem me conhecesse bem à época, perceberia perfeitamente aquilo que eu queria passar. Este segundo disco traz para a frente muito mais de mim, ou seja, eu quando fui para o Alentejo, que é onde nasce o primeiro disco e onde nasce quase tudo de bom que tenho na minha vida, aquele disco nasce desse tempo, na sequência de uma serie de acontecimentos menos bons na minha vida, mas que felizmente e o tempo passa e as coisas mudam, os quatro anos que intervalaram os dois discos trouxeram-me muita coisa boa, nomeadamente algum discernimento daquilo que pode e deve ser a minha vida. É impossível tu estares sempre melancólico e é impossível estares sempre aos pinotes. Este disco acaba por ser o materializar dessa maneira de estar. Quando fui para o Alentejo, como te dizia, ia muito com aquela ideia pré-concebida  de zanga absoluta com Lisboa, com o jornalismo, tinha uma atitude de misantropo, que não era saudável, naturalmente”. 

 

 

Se o primeiro disco acaba por ser mais denso, este mostra um equilíbrio desde o alinhamento à estrutura e passando também pelos convidados.  “O Alentejo entre vários ensinamentos trouxe-me esse, o de estar de bem com a vida. Este disco acaba por materializar isso numa perspectiva em que na tua sala de estar, teoricamente, pelo menos na minha é, acredito que na tua também, só estão as pessoas de quem eu gosto. Na minha casa não entra gente de quem eu não goste. Pode entrar mas não fica muito tempo, seguramente. E é a ideia mental que eu criei de ter as pessoas de quem eu gosto junto a mim, porque essa é provavelmente a grande lição de vida que o Alentejo me ensinou, o verdadeiro sentido da partilha. Não a partilha gratuita nem sequer a ideia lírica da palavra partilha que toda a gente usa e é muito bonita, mas, a questão prática da partilha. Há uma frase que o meu avô materno, que era uma pessoa e é, apesar de já não estar vivo, muito importante na minha vida, tinha uma expressão que gostava muito que era ‘Todos é que sabem tudo, ninguém sabe nada sozinho’. Este disco é o resultado prático disso, convido uma série de gente que gosto pessoal e profissionalmente, esta foi uma premissa desde inicio. Nunca quis dissociar uma da outra, nem consigo na verdade. Na vida e no trabalho não consigo conceber fazer uma coisa a nível profissional com alguém de quem não gosto. É impossível. É mesmo impossível! E então essa ideia foi amadurecida naturalmente com o que fui escrevendo nestes quatro anos e com as ideias que me foram surgindo, nomeadamente dos nomes que convidei, podiam ter sido outros e provavelmente serão numa outra altura. Esta sala de estar é grande cabe lá muita gente”, complementa. 

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Ao viajarmos por esta “Sala de Estar”, vamos descobrindo o interior de um homem que vai despindo a sua alma. Fiquei com a dúvida até se este disco não mostraria mais de si que o “Do quarto”. Coloquei-lhe com a mesma frontalidade com que Carlos Leitão se disponibilizou para todas as minhas questões, até as mais pessoais. “Isto reportando para o primeiro, a partir do momento em que o estado de espírito é completamente melancólico e angustiado com pensamentos, com coisas que via e vivia… naturalmente que é um trabalho muito mais só do ponto de vista pessoal, ainda que eu tenha, como sempre, recorrido das pessoas de quem eu gosto, lá está… nomeadamente de quem me acompanha, o meu irmão Henrique, o Carlos Menezes, o Custódio Castelo, o Naná, peça fulcral, o Fernando Nunes do Estúdio Pé de Vento. Foi um disco muito mais de solidão, de coisas negras e não recomendáveis. Este disco tem muito de mim! Tu não amas sozinho! Podes amar pouco tempo sozinho, mas não amas muito tempo sozinho. A partir do momento em que partilhas a tua vida, as tuas emoções, até as tuas angustias com mais pessoas, porque como dizia o Fado da Maria Rosário Betencourt, ‘ uma dor que se reparte, não custa tanto a sofrer’.  A sala de estar acaba por ser isso. Ter junto a mim gente como o Mário Pacheco, o Jorge Fernando, o Custódio Castelo, que me conhece profundamente tão bem como os outros que já referi, o meu irmão e o Carlos Menezes que são o meu núcleo duro, Guilherme Banza, meu amigo de infância, o Júlio Resende que é um músico excepcional que entendeu perfeitamente aquilo que eu queria transpor para este disco, o Tiago Torres da Silva… toda essa gente, o Paulo Paz, com quem eu trabalho aqui no clube há 5 anos, é gente que já me vai conhecendo, uns melhor e outros pior, naturalmente”, esclareceu. 

 

 

Foi ainda mais a fundo na questão e revelou que “não me dou de igual forma mas quando gosto e quando quero partilhar, gosto de fazer as coisas por inteiro. Dou-te o exemplo do Mário Pacheco que fez uma música para um poema meu em que foi a linha exacta em que eu queria que aquilo fosse levado. Teve essa sensibilidade que não é órfã do conhecimento que tem de mim, naturalmente”. 

 

Carlos Leitão está como é na vida e no palco. Não há um personagem nem uma construção de artista. “Mesmo que eu quisesse não o conseguiria fazer. Lembro-me de aquando do lançamento do primeiro disco ter respondido isto a ti: Independentemente do resultado final há uma coisa que não abdico e que não admito que coloquem em causa que é a minha integridade e o facto de eu estar ali inteiro. Mesmo correndo o risco de me expor, talvez demasiado. Mas eu sou assim tanto na vida pessoal, se tivermos aqui a jantar, como se eu tiver no palco. Não gosto de plástico e acho que não faz sentido. O público entende isso perfeitamente, seja no fado seja no que for”, diz-nos dando como exemplo “eu não consigo ir para o palco cantar uma letra profundíssima com ligeireza. É impensável para mim porque eu não consigo isso na minha vida. Sou um tipo de afectos. Sou um tipo que gosta de amar. Sou um tipo de toque, de abraço fácil, de beijo fácil”, esta, que é também uma lição do Alentejo, “a vida é curta demais para beber mau vinho”, até porque “cada vez perco menos tempo com chatices, com tricas, com intrigas, com discussões vãs como por exemplo o que é ou não fado…”. 

 

Numa recente critica que fiz a este disco, escrevi que Carlos Leitão podia não ser dos fadistas mais conhecidos mas que era dos que mais merecia ser ouvido, por tudo o que referi no inicio deste texto. A verdade é que muitos dos seus pares o elogiam e colocam-no num patamar de enorme qualidade. O público que o ouve fica também viciado (sem efeitos secundários ou malefícios para a saúde).  

 

 

Mas qual o peso dado às criticas/reacções que obtém por parte do público e dos seus pares? “Ambas as opiniões são válidas e importantes para mim, naturalmente”, começa por nos dizer antes de acrescentar que “a opinião dos meus pares, eu ouço tudo o que me dizem , bem ou mal, e até aquilo que não me dizem eu ouço. Indirectamente venho a ouvir depois. Obviamente que faço a minha própria peneira e há gente ,que eu sei que partilha essa opinião que disseste e que me lisonjeia, naturalmente, mas acho que a questão dos meus pares, sem falsas modéstias, é bom para me dar um acréscimo de auto-estima, no fundo insuflar um bocadinho mais o ego e de trazer-me alguma certeza que as coisas estão a ser bem-feitas. Arrogantemente, poderão dizer alguns, mas eu não preciso da opinião dos meus pares para saber o caminho que tenho que fazer, se não eu estava lixado. Não está completamente incerta porque convenhamos…as opiniões normalmente são muito mais castradoras do que inspiradoras. Naturalmente que aos meus pares a quem eu reconheço valor e autoridade, a quem reconheço o afecto suficiente para os considerar meus pares e pessoas de quem eu gosto, é muito mais do que insuflar o ego, é algo que me inspira e traz alegria”. Já relativamente ao público afirma que “não é estúpido, como te dizia, eu acho e alargando a apreciação independentemente dos rótulos que queiram pôr nos artistas, o público é soberano”, exemplificando que “se houver uma pessoa que goste de ouvir determinado artista já valeu a pena. E isto não é ‘charmin’ nem conversa de lugar comum. Eu quero é que as pessoas sejam inteiras e coerentes naquilo que fazem e não vacilem em virtude do mercado, da procura ou daquilo que achem que o público está à espera”.  

 

 

Diz-nos ainda que “não faço discos para os meus pares, nem para os meus colegas, nem para os guitarristas. Não quero que os músicos que gravam comigo façam uma malha de guitarra para todos o guitarristas verem como aquilo se faz. Na música a partir do momento em que há alguém que a canta, a palavra é muito mais importante que tudo o resto!”. 

 

 

 

Carlos Leitão perdeu (fisicamente) no ano passado uma das pessoas mais importantes da sua vida, o pai, que tinha uma importância extrema, e continua a ter, em tudo o que o fadista faz, na vida e na arte. Confesso que estive indeciso sobre fazer uma pergunta tão pessoal mas que é também tão importante no campo profissional. Fi-la, tremi e na primeira frase que me respondeu, tranquilizou o meu espirito: “Eu gosto de fado por causa do meu pai”.  

 

 

 

O meu pai cantava sublimemente e eu, em miúdo, o primeiro contacto que tive com o fado foi naturalmente a ouvir o meu pai e depois dessa porta aberta abriram-se outras. Outros artistas que eu fui ouvindo através do meu pai, como o Carlos Ramos, a Fernanda Maria, Tristão da Silva, gente que ainda hoje em dia é referencial na minha vida no fado e depois o meu pai foi além de uma referência no que toca aos valores, a integridade, a dignidade, aos afectos… O meu pai está em mim todos os dias desde que acordo. O meu pai morreu há um ano mas eu falo do meu pai todos os dias. Lembro-me do meu pai todos os dias. Quando eu começo a gravar este disco, começo a gravá-lo meses depois de o meu pai morrer e confesso que houve ali a tentação de adiar agravação do disco. Ténue mas houve essa tentação. E fiz um exercício interior de se o meu pai cá estivesse, o que ele queria que eu fizesse”, deixando ainda a certeza que caso o pai surgisse nesta conversa lhe diria que tinha tomado a atitude correcta ao avançar para a gravação do disco. 

 

 

Neste disco, mais do que o tema dedicado a ele, curiosamente escrito na manhã do dia em que o meu pai morre, escrito e composto num quarto de hotel na Áustria…” acrescentando que “isso tem um peso que só eu sei qual é. É um tema que dificilmente me arriscarei a cantar em público, não porque o meu pai necessitasse que eu lhe fizesse um tributo no disco, mas porque eu assim o entendi”, esclarecendo a importância do seu pai neste disco. “Mas tentando responder mais objectivamente, o factor de eu ser fadista e ter sabido fazer as coisas pelo menos de uma forma integra como faço é uma homenagem diária que eu faço ao meu pai”. 

 

Outro dos nomes importantíssimos neste disco é Carlos Menezes. Neste disco e na vida de Carlos Leitão. “Ao Carlos só lhe falta o sangue. De resto o Carlos é muito meu, familiarmente. Muito mais que alguns familiares directos que eu tenho e é uma pessoa extraordinária, o que faz com que fosse, é e será uma peça fulcral na minha vida profissional e principalmente na minha vida pessoal” revela-nos Carlos Leitão. 

 

Era um sonho antigo” começa por nos dizer sobre a escrita da moda alentejana deste disco, “A noite fica-me bem”. “Quando o cante foi património eu lembro-me de ter confidenciado ao Carlos Menezes que gostava de gravar uma moda no disco. E na altura, ele disse-me que tinha que ser uma coisa muito bem feita, que eu tinha que ser original, do ponto de vista em que de repente houve muita gente a gostar do cante, tal como fado. O Cante aqui há uns anos, basta recuar meia dúzia, era uma canção para velhos, na maioria” da opinião das pessoas, revela-nos. 

 

 

O Cante que serviu de ponto de partida para uma viagem ao baú das memórias do fadista, pois “eu recordo-me que quando vivia no Alentejo, o cante era o fim de noite normal de um jantar, de uma tertúlia, de um petisco…”, acrescentando que “na minha família só eu e o meu irmão é que não somos alentejanos, infelizmente. Mas crescemos imbuídos disso. Os meus pais e os meus padrinhos toda a vida viveram juntos, o meu padrinho é de uma aldeia com forte tradição no cante que é Vila Alva, Cuba, portanto eu cresci com o fado e o cante, paralelamente, a ganharem uma importância crescente na minha vida”. 

 

 

Para este tema, convidou “quatro vozes que cantam de uma forma superior, todos eles novos, são meus amigos pessoais”. A letra para esta moda “já a tinha escrita”, tendo sido criada “nas minhas viagens do Clube de Fado para casa. Quando eu ia sozinho no carro, ia fazendo uns ensaios e gravava tudo. E depois ali à quarta tentativa ‘ foi isto mesmo’, foi só dar uns toques e assim nasceu essa moda”, sem instrumentos e cantada à capella, “a única diferença foi que não convidei um grupo inteiro”. Neste tema conta com a participação de Pedro Calado, Hugo Baletas, Buba Espinho e David Pereira.

 

 

Na “Sala de Estar”, existe apenas um tema que não tem letra de Carlos Leitão, conta com Tiago Torres da Silva a assinar “O Tempo que me é dado”. Sobre este tema e aquando da apresentação do disco, Carlos referiu que se tinha sentido despido (interiormente entenda-se). Na conversa com o Infocul revela que “para mim o Tiago é um tipo com uma sensibilidade extraordinária, nomeadamente para fado, embora ele escreva para outras realidades musicais”.  Carlos Leitão conta-nos a estória por detrás da participação de Tiago Torres da Silva neste disco, “eu lembro-me que quando gravei o meu primeiro disco, há um dia em que vou ali fazer um espectáculo para os lados de Belém e alguém que lá estava disse-me ‘Eh pá tu devias escolher mais poetas para os teus trabalhos’ e eu perguntei, humildemente, porquê? A pessoa disse-me que ‘às tantas parecia arrogante ter um disco todo escrito por ti’. Eu confesso que não entendi o alcance da questão, lá está, fiz a minha própria peneira, não achei válido, sinceramente. Se eu escrevo, componho, toco e canto, era no mínimo estúpido não ligar a isso e ir pedir poemas a mais pessoas. Não é que eu não goste, não é essa a questão e espero que frises isso, não é essa a questão. A questão é que se escrevo tanto e para várias pessoas, porque não posso escrever para mim? E então… Não foi um capricho ter o Tiago, mas para não pensarem que sou arrogante vou buscar, dos poetas vivos, uma letra de um dos que eu mais respeito. Porque na verdade, os meus poetas referenciais já morreram como o Ary dos Santos, Pedro Homem de Melo e o Vinicius de Moraes, são uma trilogia que estão lá num pedestal onde ninguém chega”.

 

 

 

Ainda sobre este tema revela que “o Tiago é um tipo formidável, lá está, o Tiago é um enorme amigo meu, sem me conhecer aprofundadamente como muitos dos outros convidados, escreve uma letra como se fosse do meu núcleo duro de sempre. O Tiago despe-me completamente naquela letra. Estou ali eu, inteiro, do primeiro ao último verso, como provavelmente nem eu conseguiria escrever um auto-retrato daqueles”.

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Classifica este disco como “de fado, claramente” e “com vários aromas que não apenas do Alentejo. Tens um tema em que convido o João Frade, o acordeonista, a tocar… em que esse tema é apenas tocado com viola e acordeão e tem um cheiro tremendo à chanson française, por exemplo. Tens o tema com o Rui Veloso em que ele toca guitarra eléctrica”. Ressalva contudo que “a mim o que me interessa é se aquilo é bom ou não”.

 

 

Carlos Leitão revela ainda que “era o que mais me faltava eu estar preocupado com os rótulos que me vão pôr, que os meus pares me vão pôr…Deus me livre! Há uma coisa que eu te garanto, lições de ser fadista, o que é o fado e como se deve interpretar o fado, não vou dizer que de ninguém, mas eu é que selecciono de quem é que eu recebo e por uma razão simples: eu já ando cá há anos suficientes, já fiz o suficiente e já ouvi o suficiente para perceber a quem é que eu reconheço autoridade para me falar sobre o que quer que seja. E às vezes as opiniões não são positivas direccionadas a mim. Mas isso não retira importância à pessoa para eu lhe conferir autoridade e me dar a sua opinião”, até porque “se andarmos todos preocupados com rótulos ninguém faz nada de novo e andamos todos a cantar o fado da desgraçadinha em que mata o pai, a mãe e o filho e se o tipo da mercearia sobreviver a gente vai lá e dá-lhe um tiro na cabeça”.

 

 

O local onde se realizou esta conversa (entrevista seria demasiado formal), o Clube de Fado, é também um local importante para o homem e o artista, Carlos Leitão. “Eu considero o Clube de Fado a melhor casa de fados de Lisboa. Há muitos anos que a considero como tal não apenas pelo elenco ou pelos músicos. Para já a casa é absolutamente fantástica, tem uma acústica brutal e tem uma maneira de trabalhar e uma organização muito próprias. Para mim tem sido uma experiência fantástica por várias razões: primeiro porque venho para o Clube de Fado há cinco anos quando eu comecei a fazer as pazes com Lisboa. Eu na altura estava no Alentejo e quando o Mário Pacheco me convidou para vir para cá, inicialmente fizemos a experiência de um dia na altura e depois dois dias. O Clube de Fado acabou por directa e indirectamente ter um papel fundamental neste disco porque através do Clube houve várias coisas que mudaram na minha vida. Logo à cabeça, o facto de eu estar no Clube de Fado quatro dias por semana não era plausível que eu andasse para cima e para baixo entre o Alentejo e Lisboa. Tive que voltar para Lisboa. E ao estar em Lisboa há portas antigas que eu tinha fechado e que se voltam a abrir e há outras novas que se abrem. É muito mais fácil para um fadista sê-lo em Lisboa do que sê-lo no Alentejo e depois porque desenvolvi com o Mário Pacheco uma relação muito especial. Há um respeito que é mutuo, uma admiração que é mutua, não somos sabujos um do outro que é uma coisa maravilhosa e rara no meio do fado, não precisamos de nos andar a abraçar todos os dias. O Mário gosta de mim, gosta de me ouvir cantar, gosta de me ouvir tocar e o sentimento é reciproco, quer dizer, não gosto de o ouvir cantar porque ele não canta”, diz-nos esboçando um ligeiro sorriso.

 

 

Cantar numa casa de fados que conta com 21 anos, numa cidade, Lisboa, em que nascem casas de fado a granel, é um excelente cartão de visita para mim enquanto fadista”, acrescentando que “para mim é uma satisfação enorme”.

 

 

Em jeito de remate a esta conversa foi pedido ao fadista para se descrever enquanto homem e não enquanto artista, “ao jeito de o que dizem os teus olhos”, disse-nos sorrindo, para depois revelar que “sou um tipo de afectos ainda que muitas veze não transpareça, e sei que há muita gente que me acha trombudo, seco e arrogante, entre outras simpatias que vou ouvindo aqui e ali, mas sou um tipo de afectos, um amante puro, acho que o grande móbil da minha vida de há muitos anos para cá foi o amor, seja ele pela minha mulher, pelos meus enteados, pelos meus amigos, pelos meus pais… é a única maneira que eu acho equilibrada de nós andarmos por cá. Não vale a pena perder tempo a semear chatices e ódios porque em última análise a partir do momento em que entras numa discussão com alguém… Imagina que escrevias uma critica a arrasar o meu disco, a dizer que era uma m****, que era uma vergonha… Em última instância isso não vai alterar a minha opinião do disco, portanto, é nesses momentos de limite que as pessoas têm que ser verdadeiramente democratas e perceber que nem Jesus Cristo agradou a toda agente e porque haveria de ser eu? Não vou ter essa veleidade. E acho que isso foi uma das coisas que conquistei ao longo da minha vida, era intransigente e até bruto e radical em algumas opiniões até determinada idade, e o Alentejo… sempre o Alentejo,  trouxe-me a paz e a qualidade de vida para eu perceber o que cá ando a fazer. Não me trouxe a paz e a qualidade de vida gratuitamente, trouxe-me como um veiculo, o Alentejo foi um psicólogo na minha vida claramente. Eu sou um tipo que nasceu em Lisboa, quis ser jornalista a vida toda, como te disse sou um tipo de afectos sou um benfiquista sofredor, e pá sou principalmente, e digo sem falas modéstias, um tipo de uma integridade inabalável, isso tenho a certeza absoluta. E isso pode ser comprovado pelos meus pares, pelos meus amigos e pelas pessoas de quem eu gosto, porque é para essas que temos que ser verdadeiramente genuínos. O resto, se as pessoas não gostarem de nós ou do nosso trabalho, é um direito que é delas e eu não vou mexer uma palha para agradar a quem não gosta de mim. As coisas são assim! Porque também não gosto de toda a gente, também não gosto de todos os fados, eu também não gosto de todos os tipos de fadistas. Agora volto ao início. Não admito que ponham em causa a minha integridade, isso não admito”.

 

 

“Sala de estar” conta com vários convidados especiais, tendo sido produzido por Carlos Leitão, Carlos Menezes e Fernando Nunes. Um disco de fado mas com janelas abertas para todo o mundo que existe em Carlos Leitão.

 

Fotografias: Paulo Maria

Rui Lavrador

Iniciou em 2011 o seu percurso em comunicação social, tendo integrado vários projectos editoriais. Durante o seu percurso integrou projectos como Jornal Hardmúsica, LusoNotícias, Toureio.pt, ODigital.pt, entre outros Órgãos de Comunicação Social nacionais, na redacção de vários artigos. Entrevistou a grande maioria das personalidades mais importantes da vida social e cultural do país, destacando-se, também, na apreciação de vários espectáculos. Durante o seu percurso, deu a conhecer vários artistas, até então desconhecidos, ao grande público. Em 2015 criou e fundou o Infocul.pt, projecto no qual assume a direcção editorial.

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