Tempos difíceis e estranhos estes que vivemos. É, no meio de um sofrimento que nos rodeia dia-a-dia, hora-a-hora, que nos devemos agarrar aos que nos emociona, nos faz acreditar que a vida pode ser uma paleta de cores ao invés de um trágico destino.
Esta quarta-feira, no Campo Pequeno, Carminho foi a protagonista maior de um espectáculo que deve ficar no que de melhor se assistiu e viveu em 2020.
Perante uma sala com mais cadeiras vazias do que aquelas que eram ocupadas pelo público, Carminho rapidamente apercebeu-se do que tinha por diante e decidiu abrir o seu coração e entregar-nos a sua alma.
De voz embargada e após interpretar os dois primeiros temas, disse: “Que emoção. Obrigado por estarem aqui. Não estava à espera de me emocionar. Obrigado por demonstrarem que querem estar aqui e ultrapassar estas barreiras”.
Na vida temos sempre duas hipóteses: encarar a verdade ou fingir que ela não existe. Consoante a escolha anterior, várias outras escolhas multiplicam-se por diante. Carminho foi pela mais dura e crua: encarou a verdade.
E verdade é talvez o mais correcto adjectivo desta sua actuação. Foi uma performance toda ela feita com a verdade que a sua alma e o seu coração impuseram.
Na sua voz estava a alma da artista, da fadista, da mulher, da filha, da mãe. Estava Carmo Rebelo de Andrade, que todos conhecemos como Carminho.
Imaginem escrita de vários poetas a ganhar vida na voz de Carminho. Continuem a imaginar que isso leva centenas de pessoas a emocionarem-se. E de olhos fechados ouçam, ou imaginem, os aplausos e gritos de êxtase. Por entre tantas cadeiras vazias, o Campo Pequeno parecia cheio. E estava, com o talento de Carminho.
Confidenciou que não cantava desde Março. E que durante este período foi mãe. E que a actual situação pandémica associada â natalidade a deixava ainda mais nervosa para este concerto. E que a emoção inicial lhe deu pica. E que cantaria ali muito mais do que aquilo que o tempo permitia.
Carminho trouxe ao Campo Pequeno um alinhamento no qual constaram muitos dos temas do último disco, ‘Maria’, mas também todos os outros que marcaram o seu percurso. Além disto, destacou-se ainda o convidado especial: Camané.
‘O Começo’, no Fado Bizarro; ‘Desengano’, no Fado Latino; ‘O menino e a cidade’, ‘A Bia da Mouraria’; ‘Se Vieres’; ‘A Mulher Vento’ e ‘Bom dia Amor’ foram alguns dos temas que interpretou naquela que poderá ser considerada a primeira parte do concerto.
Neste último tema, colocou o público a cantar o refrão e a força do coro foi tanta que Carminho afirmou que “até as cadeiras vazias cantam”.
De facto, a espiritualidade da arte foi imensamente maior que presença humana ali presente e só uma Arte superior poderia conseguir tamanha dimensão emocional como a que se sentiu nesta noite.
‘Disse-te Adeus’; ‘Sete Saias’; ‘Cavalo de várias cores’ e ‘A Estrela’ antecederam a entrada em palco do convidado especial desta noite.
Foi já com o tema ‘Saudades trago comigo’ que Camané surgiu em palco para o primeiro de vários duetos com Carminho esta noite. A solo, Camané, cantou o ‘Sei de um rio’. Carminho considerou-o “uma das minhas maiores referências”.
Carminho contou em palco com André Dias, na guitarra portuguesa; Flávio César Cardoso Jr., na viola clássica; Pedro Geraldes, nas guitarras e Tiago Maia, no baixo.
“Aquela emoção do início deixou me nervosa. Não cantava desde Março. Entretanto tive um filho. E não só esta bizarrice que estamos a viver, como ter um filho, fez me vir nervosa. Não sabia o que ia acontecer. Obrigado, sinceramente, por terem vindo!”, despediu-se Carminho.
Até ao final do espectáculo ouviram-se ainda temas como o Fado Pechincha, ‘Marcha de Alfama’, ‘Senhora da Nazaré’, ‘Bairro Alto’ ou ainda ‘As minhas Penas’
Este espectáculo de Carminho demonstrou-nos que a Arte tem o poder de libertar a nossa alma das amarras deste sofrimento que nos é, agora, imposto. E isso dá-nos a possibilidade de sonhar. Através da arte!
Este concerto esteve inserido no ciclo ‘Santa Casa Portugal ao Vivo’ que conta com 40 espectáculos, divididos entre Lisboa e Porto.
Texto: Rui Lavrador
Fotografias: Rute Nunes e Carlos Pedroso