Opinião – Morante de la Puebla: o último clássico e a arte de escolher o fim

Opinião – Morante de la Puebla: o último clássico e a arte de escolher o fim, na tarde de 12 de Outubro de 2025.

Texto: Rui Lavrador
Fotografia: Nuno Almeida

Opinião – Ontem, Morante de la Puebla despediu-se das arenas. Sem grandiloquência, sem o ruído do anúncio permanente. Um gesto antigo – discreto e absoluto – a selar um percurso que devolveu respiração ao toureio e devolveu, também, dignidade a uma palavra tantas vezes gasta: estilo. Não é apenas um adeus de calendário; é o fecho de um ciclo que terá de ser lido com a gravidade que a história reserva aos raros.

Há toureiros importantes; e há toureiros necessários. Morante pertence aos segundos. Num tempo em que tudo se mede por intensidade instantânea e espuma, ele insistiu em devolver tempo ao espetáculo: tempo para citar de longe, tempo para compor o corpo, tempo para dizer a verónica sem pressa, tempo para alongar o natural até onde o braço permite e a alma aguenta. A sua estética não era refúgio museológico: era resistência. Resistência à ansiedade, resistência ao cálculo, resistência ao efeito fácil – uma pedagogia da pausa que reensinou plateias a esperar.

O estilo como ética

Em Morante, a forma nunca foi adorno: foi ética. A colocação dos pés, a linha do ombro, o compás da cintura – cada detalhe obedecia a uma moral do ofício, onde a beleza não é capricho mas exigência. A verónica voltava a fundar o rito; a muleta convertia-se em frase; o passe não era gesto: era fraseado. Quando lhe chamam clássico, por vezes esquecem o risco. Não há classicismo sem perigo: a lentidão que ele impunha à sorte é, precisamente, a maneira mais audaz de se aproximar do touro. Esticar o tempo é esticar a vida. E é nessa borda fina que a arte acontece – poucas vezes, e por isso mesmo inesquecível.

A lição do tempo

Se quisermos resumir o seu legado a uma palavra, talvez seja esta: tempo. O tempo que a arena voltou a ter quando ele estava dentro dela. O tempo que a música da praça reencontrou; o tempo que os públicos, em silêncio, aprenderam a conceder. Num mundo fatigado pelo apelo constante, Morante lembrou que a emoção mais duradoura nasce devagar. E que a faena, quando é linguagem e não catálogo, não precisa de sublinhados: respira, cresce, cala, regressa – como um poema dito de memória.

Essa lição não é técnica apenas; é filosófica. Ao pedir tempo, Morante exigia dos outros – e de si – um pacto de verticalidade. Nada de artifícios; nada de pressa; nada de cinismo. A beleza, quando aparece, aparece desarmada. Talvez por isso o seu classicismo tenha sido contemporâneo: porque contrariava, com a autoridade de quem sabe, a tirania do imediato.

A coragem da fragilidade

O seu percurso não foi uma linha reta. Houve interrupções, regressos, sombras. Houve também – o que é raro neste meio – uma maneira frontal de falar de saúde mental sem adornos nem desculpas. Essa coragem humanizou o herói e acrescentou espessura moral à figura do matador. Ao admitir as próprias fissuras, Morante rompeu um silêncio antigo: mostrou que a força não se mede pela negação da dor, mas pela sua nomeação. Não quebrou a tradição; abriu-lhe uma janela. A arte, finalmente, respirou como respira a vida. Talvez pudesse abordar outros temas mais sensíveis. Ainda não o fez. Não sabemos se o fará. Aguardemos. Com a calma que ele impunha ao seu toureio.

O adeus como gesto político (dentro da arte)

Escolher a hora de sair é o último ato de governo sobre si mesmo. Ao despedir-se agora – sem arrasto, sem turismo do crepúsculo -, Morante ensinou outra coisa: a memória também se compõe. Um fim assim evita a erosão do mito, poupa a repetição, fixa o retrato na luz certa. É um gesto estético, sim; mas é igualmente um gesto ético: a recusa de se tornar caricatura do próprio brilho. Numa arte onde o tempo costuma decidir por nós, ele decidiu pelo tempo. Mas espiritualmente esta saída era previsível. Espiritualidade e energia cruzam-se, mas são distintas. Sobre isso falarei um dia, se me apetecer.

O que fica depois

Quem tente medir Morante por troféus e percentagens perderá o essencial. O que fica é uma autoridade artística impossível de simular: o restauro da pureza, a liturgia do cite, a paciência do muletazo inteiro; a certeza de que a técnica, quando é destino, desaparece dentro da beleza. Fica também a prova – tão necessária – de que a tauromaquia ainda é capaz de produzir acontecimentos culturais, desses que saem da praça e entram na conversa de uma cidade. E fica, por fim, um rasto para os que virão: não a obrigação de imitar, mas a responsabilidade de dizer a tradição na sua própria voz.

É provável que, a partir de hoje, vejamos tardes futuras com outro olhar: perguntaremos, sem querer, onde está o tempo, onde está a música, onde está a pausa. Esse é o sinal dos verdadeiros: alteram o nosso critério. Morante de la Puebla não “acaba”: cristaliza-se. Passa para o lado ativo da memória – o lugar onde se guardam as coisas que mudam a forma como olhamos o mundo.

O seu adeus não deixa vazio; deixa exigência. E essa é, talvez, a definição mais alta de grandeza: ter sido, por tantos anos, não apenas admirado, mas necessário.

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