Nostalgia no Wrestling – Os nossos heróis terminaram as suas histórias e nós começamos a viver as nossas, após desligarmos a TV e respirarmos fundo.
O Wrestling como narrativa contínua
Através do Wrestling é possível acompanhar, ao longo de 30 anos ou mais, narrativas que marcaram gerações e que são contínuas. Em que as estrelas apresentadas na televisão têm uma evolução real, e transcendem um mero combate.
O Wrestling tem disto. Vemos um ídolo a regressar, ou um antigo lutador a dar conselhos a um jovem, e remontamos para trás no tempo. Lembramos em que altura e ciclo da nossa vida estávamos quando aconteceu determinado combate, determinada apresentação, estreia ou regresso. É uma máquina do tempo, devido a esta narrativa contínua e real.
Uma máquina do tempo emocional
Também podemos remontar uma época em que, por exemplo, vimos o erguer de Daniel Bryan e do seu “Yes Movement”, que demonstrou que não importa de onde viemos, não importa o nosso aspecto, nós também podemos chegar onde queremos (presente na imagem de capa do artigo). Vimos a criação e separação dos The Shield, em que o Roman Reigns e o Dean Ambrose foram traídos pelo seu “irmão”, Seth Rollins.
E até hoje, Roman Reigns carrega o peso dessas traições vindas de quem mais amava, até porque também aconteceu com família de sangue e com o seu “apoderado”, Paul Heyman. Todas as vezes para choque empático e emocional dos fãs.
Remontamos a uma época em que CM Punk se revoltou e abandonou a empresa WWE nos piores e mais polémicos termos. E recordamos o momento dele quando finalmente regressou após quase 10 anos anos, para ovação total de milhões de pessoas em redor do mundo. Já mais maduro, já mais crescido e já mais calmo, pelo amor aos fãs e ao desporto.
E nós aprendemos com isso e inspiramo-nos com isso. Porque às vezes o Wrestling não é Wrestling. Às vezes não é desporto. Às vezes é coração e é mostrar que temos de ter coração suficiente.
Quando o Wrestling é mais do que Wrestling
Porque dos fracos, nunca ficou a história. A história é feita de força, de luta e de resiliência. E o Wrestling está cheio dessas histórias — contínuas, intemporais, por vezes com décadas de duração.
O Wrestling, em especial a WWE, sempre foi muito mais do que apenas luta. No ecrã: heróis, vilões, monstros, rebeldes e oportunistas – cada um representando arquétipos que, de certa forma, espelhavam as nossas próprias lutas internas. Acompanhámos histórias, rivalidades, personagens que pareciam maiores do que a vida.
“Cicatrices”: Heróis que crescem connosco
Há pouco tempo cruzei-me com uma publicação na rede social Instagram que me deixou nostálgico e a pensar. A página era @gonzadelasluchas, e mostrava como grandes ídolos do Wrestling mudaram com o passar do tempo, e são um verdadeiro retrato da vida. Ao som de “Cicatrices” da banda Airbag. E deixo em duas imagens todas fotos e legendas apresentadas nessa publicação.
A letra de “Cicatrices”, dos Airbag, fala das marcas emocionais deixadas por um amor que terminou. Mostra a dificuldade em ver a outra pessoa seguir em frente, como se nada tivesse mudado, enquanto quem fica carrega o peso da memória. Reconhece que o tempo ajuda a acalmar, mas não apaga totalmente – porque as cicatrizes permanecem, como lembranças que nunca desaparecem por completo.
No fundo, o tema central é claro: o fim de uma história deixa feridas, mas também abre caminho para recomeçar.
O tempo não perdoa, mas transforma
De certa forma, é o mesmo que acontece no Wrestling. Tal como numa relação amorosa que chega ao fim, ver os heróis da infância mudarem ou reformarem-se deixa em nós uma sensação de perda. Ficam as cicatrizes da nostalgia: o Shawn Michaels que já não é o rebelde, o Undertaker que deixou de ser imortal, o Jeff Hardy que envelheceu e sobreviveu aos seus próprios demónios.
Em “Cicatrices”, a personagem da canção vive presa ao passado, e nós, como fãs, também podemos ficar agarrados a essas memórias. Mas tanto a música como o Wrestling ensinam que o presente é outro, que o tempo transforma os heróis e que a dor de os ver mudar também é um convite à nossa própria transformação.
O tempo não apaga, mas ensina; não devolve o que perdemos, mas abre espaço para que deixemos de ser apenas espectadores e passemos a escrever a nossa própria história.
O ringue como espelho das nossas vidas e lutas pessoais

Primeira imagem
- “E um dia…”
Representa o início da mudança, o momento em que o fã percebe que seus ídolos também estão a envelhecer e a mudar de papel. - Shawn Michaels e Triple H
“Deixaram de ser os miúdos rebeldes e tornaram-se na autoridade”
Antes, eram os rebeldes da D-Generation X, ícones da irreverência. Hoje, ocupam cargos de autoridade nos bastidores e gestão empresarial da WWE, ajudando a dirigir a empresa como altas patentes das chefias. - John Cena
“Casou-se e começou a usar fatos”
O eterno herói de muitas crianças amadureceu. Cena deixou de ser apenas o ídolo do ringue e se tornou ator, palestrante e uma figura pública séria. - Rey Mysterio
“O seu filho cresceu e ele começou a aparecer menos”
Dominik, o filho de Rey Mysterio, cresceu e até entrou no Wrestling. Rey, por sua vez, começou a aparecer menos, mostrando que o tempo passa e novas gerações chegam. - Undertaker
“A sua personagem reformou-se e conhecemos Mark Callaway”
O Deadman, uma das maiores lendas, aposentou-se após 30 anos a manter uma presença pública low profile ou até inexistente. Atrás do personagem, os fãs conheceram mais do homem real, Mark Callaway. - Randy Orton
” Deixou de ser o assassino de lendas, porque tounou-se numa”
Antes caçava lendas e veteranos, agora ele mesmo é uma. Um ciclo que se completa.

Segunda imagem
- Edge
“ Já não era o oportunista máximo, nem tinha o cabelo comprido”
O “Ultimate Opportunist” envelheceu, cortou o cabelo, mas permanece como uma lenda respeitada. - Batista
“ Cumpriu o seu sonho de ser ator”
De estrela do Wrestling a astro de Hollywood, Batista conseguiu conquistar outro sonho. - Kane
“ Deixou de ser um monstro”
O “Big Red Machine” transformou-se, saindo do personagem aterrorizante e até assumindo cargo de presidente de uma Câmara Municipal na vida real, no Condado de Knox, no estado do Tennessee, pelo Partido Republicano. - Vince McMahon
“ Deixou de estar ao comando e a mandar”
O dono e patrão máximo da WWE por quatro décadas, foi forçosamente afastado da sua posição “eterna” por motivos polémicos, marcando o fim de uma era. - Jeff Hardy
“ Redimiu-se e venceu os seus demónios”
Lutou contra vícios e problemas pessoais, mas encontrou força para continuar no ringue e na vida. - Mensagem final
“ Então desliguei a televisão e comecei a viver a minha própria história”
A conclusão é poderosa: os ídolos mudaram, cresceram, transformaram-se. E nós fãs, a ver que os nossos heróis cresceram e terminaram as suas histórias, em vez de apenas assistir, decidimos também assumir as rédeas da nossa própria vida. Porque já não temos de apoiar tanto e com tanta sagacidade estes que apresentamos no artigo, pois venceram as suas guerras e “estão entregues”.
O tempo passa para todos
Estas transformações não são apenas curiosidades sobre a vida de astros famosos. Elas carregam uma mensagem poderosa: o tempo passa, e todos mudamos. Aqueles que foram nossos heróis de infância também tiveram que amadurecer, superar fases difíceis, de se reinventar.
E, diante disso, muitos fãs percebem que não basta viver apenas a história dos outros pelo ecrã da televisão. Chega o momento em que é preciso desligar a TV e começar a escrever a própria história.
Ídolos que se transformam com o tempo
Em suma, a publicação mostrava como grandes ídolos do Wrestling mudaram com o passar do tempo, e são um verdadeiro retrato da vida. Shawn Michaels e Triple H, que antes eram os eternos rebeldes da D-Generation X, tornaram-se a autoridade e gestores da empresa onde eram os rebeldes e renegados.
John Cena, que carregava nas costas o papel de super-herói da empresa e crianças, cresceu, amadureceu, casou-se e trocou os ténis por um fato formal. John Cena, por sua vez, vive o seu adeus. A farewell tour não tem muitas datas e cada combate sabe a despedida definitiva. Mas há algo de comovente na forma como, no adeus, homenageia os antigos adversários, usando os seus golpes e gestos para nos lembrar aquilo que realmente é a nostalgia: não apenas olhar para trás, mas reviver os momentos bonitos que passámos juntos, em frente à televisão, quando John Cena estava no auge e o wrestling era uma festa semanal.
Rey Mysterio viu seu filho crescer e até entrar no mesmo caminho, enquanto ele próprio começou a aparecer menos.
As reformas que nos custam a alma e entes queridos do passado
Undertaker deixou de ser o “Deadman” para revelar o homem real, Mark Callaway, o homem real e até com bom humor por detrás da lenda. Tal como os nossos pais, que já faleceram, também nós crescemos com a televisão ligada todas as semanas, à espera de ver este gigante do ringue.
Quando Undertaker estava no ativo, partilhava connosco o jantar e a expectativa frente à TV religiosamente para o ver a entrar maior que a vida.
E quando se reformou, foi como se um pedaço deles tivesse ido também. E assim também um pedaço de nós, dos que ficámos e víamos na carreira perto de anoitecer de ‘Taker, uma parte deles viva que se perpetuava no tempo e espaço. E víamos esses pais a nosso lado, na mesa ou sofá, a torcer pro eles e a gritar quase como se fosse golo de um clube.
Agora, ao ver Mark Calloway — o eterno Undertaker — ainda a surgir, mesmo que já longe da glória do passado e numa posição de tutor e treinador, como roupas à civil e não as vestes engradecidas e aterradoras que usava, sentimos uma estranha alegria.

Sentimos que a vida continua, e com ela continua também a ligação a esses mitos que nos acompanharam. E mesmo sem os pais, sentir que a vida continua é uma alegria. Uma alegria estranha, mas alegria na mesma.
Também, Randy Orton, que em tempos foi o “assassino de lendas”, tornou-se ele próprio numa lenda viva. Batista realizou o sonho de se tornar ator de Hollywood, Kane deixou de ser um monstro para assumir o cargo de presidente de uma Câmara Municipal (a sério!), e Jeff Hardy enfrentou e venceu, após várias quedas na vida real, os seus próprios demónios mascarados de vícios graves.
Wrestling como catarse: enfrentar a vida como um combate
O Wrestling, enquanto espetáculo, cumpre uma função catártica. O conceito de catarse, herdado da tragédia grega, é justamente essa liberação emocional que sentimos ao nos envolvermos em narrativas intensas. Quando um herói vence uma luta impossível, nós sentimos a vitória como nossa. Quando uma lenda cai, sentimos a dor da perda. E esse ciclo de emoções ajuda-nos a elaborar os nossos próprios conflitos internos.
O storytelling do Wrestling é, portanto, uma metáfora da vida: há vitórias, derrotas, quedas, superações, momentos de redenção e inevitavelmente a passagem do tempo que todos sentimos.
A importância do Wrestling vai além do entretenimento. Ele ensina, de forma simbólica, que cada personagem tem seu arco de evolução, que ninguém permanece para sempre no mesmo papel, e que não existe glória eterna sem mudança. Os rebeldes tornam-se autoridades, os monstros tornam-se homens comuns, e até os imortais penduram as botas. Mas esse processo não é um fim – é um convite para que cada fã reflita sobre a sua própria trajetória.
A beleza da transformação: o grande ensinamento
No fundo, assistir ao Wrestling é acompanhar a narrativa da própria vida numa versão épica. Os ringues representam os nossos desafios diários, os vilões representam os obstáculos internos e externos que enfrentamos, e os heróis representam a parte de nós que nunca desiste. Talvez seja por isso que tantas pessoas que cresceram a assistir a este universo sintam uma conexão tão forte. Não se trata apenas de luta, mas de histórias que nos preparam para enfrentar a vida real.
Quando vemos Undertaker a tirar o chapéu e as botas e a mostrar Mark Callaway, ou o vilão Edge a regressar com cabelo curto cicatrizes de um sobrevivente, percebemos que o tempo é implacável, mas também transformador. E é nesse momento que o Wrestling cumpre sua função mais bonita: deixar de ser apenas espetáculo e tornar-se espelho.
O grande ensinamento que fica é simples, mas profundo: não basta apenas acompanhar as histórias dos outros.
Um dia, todos nós precisamos de desligar a televisão, parar de ser apenas espectadores das histórias dos nossos ídolos já madurecidos, e assumir o papel de protagonistas da nossa própria jornada. Cada ciclo chega a um fim, e torna-se parte efémera de uma história muito maior e mais épica.
Fonte das imagens das montagens: página @gonzadelasluchas no Instagram
Fonte das fotografias de The Undertaker e Daniel Bryan: WWE