Os Mártires de Algibeira (ou: o melodrama de bolso dos mentirosos-vítima), com quem nos vamos amiúde encontrando.
Há uma subespécie do mentiroso compulsivo que não se contenta em deturpar a verdade — precisa dramatizá-la, orquestrá-la em três actos e, se possível, acrescentar-lhe uma lágrima estratégica no canto do olho. São os coitadinhos profissionais, os dramaturgos emocionais de ocasião, os criadores de narrativas em que a única constante é o sofrimento… deles, claro.
Dostoievski escreveu sobre o crime e o castigo. Estes criam o castigo, mas esquecem o crime. Sofrem sem causa, vitimizam-se sem ofensa, esperneiam com uma intensidade que faria corar qualquer atriz do século XIX — e tudo isso com um copo de vinho numa mão e o telefone noutra, prontos a documentar a tragédia em tempo real no Instagram.
É fascinante como se erguem em torno de uma espiral imaginária de abandono, injustiça e perseguição. Uma simples mudança de humor de alguém à sua volta transforma-se rapidamente num trauma intergeracional. Se não lhes ligas durante dois dias, tornaste-te frio. Se lhes ligas, estás a controlar. E se ousas dizer que talvez — só talvez — estejam a exagerar… és insensível, cruel, um monstro kafkiano.
Kafka, aliás, teria desistido de “O Processo” se tivesse conhecido uma destas criaturas. Porque, com elas, o processo nunca acaba. É uma série sem fim, com temporadas infindáveis de intrigas invisíveis e agressões passivo-agressivas que só elas testemunharam.
E não, não é possível “desdramatizar”. Pedir a uma vítima-ficcional que acalme é como pedir a um tenor que sussurre. O drama é o oxigénio. Sem ele, definham. Tornam-se… banais. E para quem vive de palcos, a banalidade é o verdadeiro inferno.
Há algo perversamente sofisticado neste tipo de mentira: ela vem travestida de emoção. É a mentira que chora, que treme, que jura que não quer atenção — enquanto a exige com cada sílaba.
Ingmar Bergman, se me estás a ouvir, perdeste um elenco inteiro ao não ter cruzado com estas criaturas.
E o mais interessante — ou irritante, consoante o dia — é que há sempre uma audiência. Sempre um ouvinte disposto a consolar, um cúmplice emocional de ocasião que acredita, pela enésima vez, que “agora é sério”, “agora foi demais”, “agora passou dos limites”.
Spoiler: não passou. Está exatamente onde sempre esteve — no epicentro da auto-invenção.
No fim, restam-nos os resquícios emocionais de conversas que não levavam a lugar nenhum. Os áudios longos, os textos dramáticos enviados a horas indecentes, e aquele cansaço profundo de quem sabe que amanhã, invariavelmente, o drama recomeça. Com novo enredo. Nova injustiça. Nova lágrima.
Dizia Oscar Wilde que “a vida é demasiado importante para ser levada a sério”. Talvez. Mas estes levam o drama a sério demais, e a vida… nem tanto.