Bia Caboz: “Caminhar para o mar abrir é escolher não ficar no fundo”

Bia Caboz: “Caminhar para o mar abrir é escolher não ficar no fundo”, destacou em entrevista ao Infocul.pt.

Entrevista e Texto: Rui Lavrador / Fotografias: Warner Music

O mais recente single de Bia Caboz, Quero É Rir, pode ter um título leve, mas nasce de um lugar fundo e do desejo profundo de sair dele.

“Foi uma das primeiras músicas que escrevi para o álbum. Comecei a compor há dois ou três anos, depois de voltar do Brasil, numa fase muito difícil da minha vida. Estava a atravessar uma depressão”, partilha Bia.

Porém, mesmo nesse estado, havia já uma vontade de transformação: “Enquanto escrevia, percebia que já estava a sair daquele lugar. E não queria que quem ouvisse tivesse vontade de lá ficar.”

A artista fala do impulso quase humano de procurar músicas tristes quando se está em baixo — um ciclo vicioso que, neste disco, quis quebrar. Quero É Rir é, nesse sentido, um grito de resistência emocional: “Quis escrever algo que empurrasse para a frente. Não queria estagnar na dor.

Bia Caboz: “cabe-nos a nós decidir: andamos em círculos ou evoluímos numa espiral?”

A inspiração para a canção veio também de uma peça de teatro brasileira, Alma e Moral, onde uma reinterpretação da história bíblica de Moisés a marcou profundamente. “Na versão judaica, o mar não se abre à frente do povo. Eles caminham mesmo sem saber para onde ir. E só quando a água lhes chega ao nariz é que Deus, impressionado com a coragem deles, abre o mar.

Para Bia, esta imagem simboliza exatamente o que viveu: a necessidade de dar o passo mesmo sem garantias, de confiar no movimento. “É isso que canto: vou caminhar para o mar abrir.”

O álbum chama-se Espiral e reflete essa ideia de caminho, de ciclos que se repetem, mas em espiral — com crescimento. A vida não é estável. Amanhã pode não estar tudo bem. Mas cabe-nos a nós decidir: andamos em círculos ou evoluímos numa espiral?

Do Fado às sonoridades mais contemporâneas, Bia Caboz reinventa-se sem perder a essência. O fundo do poço, diz, pode mesmo ser o lugar onde a luz se revela. “Ultrapassá-lo deu-me uma certeza: eu não volto a esse lugar. Posso voltar a algo parecido, mas será sempre noutro nível, mais alto. Isso é crescer.”

Bia Caboz: “Tudo me fascina. Até aquilo em que não acredito.”

Embora as letras de Bia Caboz não sejam propriamente religiosas, há nelas uma espiritualidade subtil, densa, íntima. E isso vem dela.

Eu sinto que tenho um lado espiritual fora do normal”, confessa, sorrindo. “Não sigo uma religião. Perguntam-me se sou católica, espírita… Eu não sou nada. Mas sinto muito. Eu funciono assim: eu sinto que é por aqui. Eu sinto que devo ir por ali. A minha manager até me diz: ‘pára de dizer que sentes’. Mas é assim que me guio.

A espiritualidade da Bia é uma escuta interior. Uma sensibilidade que, mesmo sem nome ou doutrina, molda a forma como olha e vive a vida. E, acima de tudo, como se deixa tocar pelas crenças dos outros: “Fascina-me ver como cada pessoa acredita. Mesmo que não acredite em nada daquilo, fico fascinada com a fé dos outros. Isso inspira-me.

Bia Caboz: “Caminhar para o mar abrir é escolher não ficar no fundo”

A importância de Ana Moura: “deu-me tudo o que podia dar a nível emocional

Essa abertura — esse olhar curioso sobre o mundo e as pessoas — também se reflete na relação com as suas raízes musicais. E há um nome que surge inevitavelmente: Ana Moura.

Ela conheceu a minha alma. Foi a Ana que me levou para as Casas de Fado de Lisboa. Foi ela que me disse: ‘tu tens de mostrar ao mundo o que tens para dar, que não é só fado’.” Não foi uma relação de dependência, mas de confiança mútua. “A Ana não me deu nada no sentido prático. Mas deu-me tudo o que podia dar a nível emocional. E hoje vejo que isso foi o mais importante.

Bia não esconde o orgulho em ser afilhada de uma das maiores vozes do fado português. Mas deixa claro que nada lhe foi oferecido de bandeja. “Até para ser a ‘afilhada da Ana’, tive de lutar. Foi tudo conquistado. Disse-lhe um dia: ‘Tu já és a minha madrinha’. E ela levou isso mesmo a sério.”

Essa ligação tornou-se mais do que simbólica. Ana Moura ensinou-lhe os fundamentos do fado tradicional, orientou-a, mas nunca a prendeu. “Ela deixou-me crescer. Fez questão disso. E hoje entendo. Agradeço-lhe esse espaço. Esse respeito.”

Na voz, nas letras e na forma como caminha o seu percurso, Bia Caboz revela uma força tranquila, uma espiritualidade silenciosa e uma coragem que, como ela própria diz, “não vem de estar parada à espera que o mar se abra — vem de caminhar, mesmo sem saber se há caminho.”

“Eu quero que os portugueses sintam que está aqui uma mistura feita como deve ser.”

A música de Bia Caboz não se deixa colocar numa caixa. Parte do fado, mas segue por caminhos que vão da pop à eletrónica, sempre com uma identidade própria — essa forma muito sua de cantar, de dizer, de sentir. Essa mistura não é apenas espontânea; é também pensada. “É um equilíbrio entre estratégia e emoção”, explica. “Por exemplo, quando decidi lançar Sentir Saudade como primeiro single, foi uma escolha estratégica. Não queria começar com um fado tradicional, para não me limitarem logo à partida.

Mas a escolha também veio de um lugar mais fundo. “Eu vinha de uma depressão. Não tinha nada a perder. Tudo o que viesse era positivo. Mesmo os comentários maus… não me tocavam. Eu pensava: ‘há pouco tempo ninguém sabia que eu existia’. Agora sabem. E a minha obra está a acontecer.

É com esta liberdade interior que Bia se aproxima do risco artístico — sem medo de críticas, e com uma clareza desarmante sobre o que quer construir. “Eu sou fadista. Posso cantar fado e provar que o sou. Mas também quero fazer outras coisas. E quando o fizer, continuo a ser fadista, porque levo comigo essa forma de cantar, de sentir, de me entregar.”

Bia Caboz: “O que é que representa Portugal lá fora, na eletrónica? Essa era a minha pergunta”

Um dos momentos mais surpreendentes do seu percurso recente foi a colaboração com Kura, DJ português com presença em festivais internacionais como o Tomorrowland. Uma parceria improvável? À primeira vista, talvez. Mas profundamente pensada.

“Eu sempre quis fazer um techno que eu gostasse de ouvir. Odiava techno. Mas odiava por causa do contexto. Tinha uma amiga que punha techno pesado em festas onde ninguém ouvia techno. Não fazia sentido. Então pensei: vou fazer um techno que tenha contexto. Que toque nas pessoas.

Essa ideia cresceu até se tornar um plano. “Comecei a ouvir referências, descobri DJs como o Ben Böhmer, mas sabia que tinha de ser com um DJ português. Alguém que pudesse levar a minha melodia fadista para os palcos da eletrónica, sem que ela perdesse identidade.

Kura surgiu quase por acaso, num vídeo no TikTok. “Convidei-o para estúdio sem o conhecer. Ele nem sabia o que era fado. Mas a música ficou pronta no primeiro dia. E quando lhe disse que esta música podia mudar a carreira dele, ele achou-me arrogante. Mas para mim era lógico.

Essa confiança não é presunção — é visão. “Os DJs que misturam melodias árabes, brasileiras, folclóricas… posicionam-se no mundo com uma identidade. O que é que representa Portugal lá fora, na eletrónica? Essa era a minha pergunta.

Chegou até a receber uma proposta do próprio Tiësto para fazer uma versão da música. Mas recusou. “Ele queria lançar, ia dar milhões de plays. Mas eu disse: não. Não quero ser só a voz numa música do Tiësto. Quero fazer a fusão que eu imaginei. Quero que os portugueses sintam que está aqui uma mistura feita como deve ser.

Há uma coragem radical nesta forma de estar: a coragem de não ceder ao facilitismo, de honrar a própria visão, de construir com intenção — mesmo quando o caminho mais fácil está ali, à mão.

Bia Caboz não quer apenas fazer sucesso. Quer deixar marca. Quer contar histórias que toquem, em forma e em fundo. E, sobretudo, quer que essa marca seja verdadeiramente sua.

Bia revela processo criativo e destaca importância de deixar um legado artístico

Num momento em que a estratégia assume um peso crescente na carreira dos artistas, Bia sublinha que o mais importante continua a ser o posicionamento pessoal e artístico. “Posso ter milhões de números, mas quem sou eu como artista no meio disso tudo?“, questiona, revelando uma clara preocupação com a autenticidade no seu percurso.

A cantora partilhou detalhes sobre o processo de criação da música com Piruka, que considera um momento marcante: “Tinha a música pronta e deixei espaço porque queria uma resposta. Ele ouviu realmente o que eu estava a dizer e respondeu à altura. A letra que me mandou foi a primeira e ficou como estava.” Para Bia, esta colaboração foi diferente de tudo o que já tinha vivido, especialmente por sentir que foi compreendida artisticamente.

O videoclip que acompanhou o lançamento foi igualmente inovador: “Queríamos algo intenso, com interpretação verdadeira. Dois artistas a representar uma história com realismo. Para mim, cada videoclipe é um papel. Não pode ser feito pela metade.” A artista assume um compromisso com a representação emocional em imagem, reforçando o lado performativo da sua música.

Bia Caboz: “Caminhar para o mar abrir é escolher não ficar no fundo”

Bia Caboz: “A minha arte é uma mensagem. Nem sempre óbvia, mas sempre honesta”

Sobre o seu percurso, Bia afirma que a sua maior ambição é deixar um legado: “Quero deixar algo. Não importa se vou ser isto ou aquilo. Cada coisa que escrevo tem uma mensagem. Pode ser só disponibilidade, mas é sempre algo honesto.

A artista mostra também um forte desejo de aproximar gerações. “Quero chegar a um público que outras fadistas não quiseram. A minha irmã tem 18 anos — quero que ela se reveja naquilo que eu faço. Por isso faço músicas com o Piruka, com o Kura, com a Roberta Miranda. Eu sou isso tudo. Não quero que esperem de mim uma só coisa.

Quanto às críticas, garante estar em paz com a ausência de opinião pública mais aprofundada. “A maioria só diz coisas boas, ou não diz nada. E tudo bem. Aprendi a ouvir apenas quem está no caminho, quem já lá chegou ou quem esteve e regressou. O resto é ruído.”

Bia encerra com uma certeza: “A minha arte é uma mensagem. Nem sempre óbvia, mas sempre honesta. Mesmo que só faça sentido para uma pessoa — já valeu.”

Siga-nos no Google News

Artigos Relacionados

Siga-nos nas redes sociais

31,799FãsCurtir
12,697SeguidoresSeguir
438SeguidoresSeguir
297InscritosInscrever