A última da Praça João Branco Núncio em Alcácer: despedida ao som de “Casablanca” enquanto o tempo passa por nós, uma despedida sentida, mas com olhos postos no futuro.
A última cena de um clássico: a mítica praça centenária João Branco Núncio e público nostálgico
Em Alcácer do Sal, o tempo suspendeu-se por uma tarde. A última corrida da Praça João Branco Núncio foi como ouvir “As Time Goes By” do filme já referido: uma melodia eterna que nos recorda que tudo passa, mas que há momentos que ficam gravados para sempre. A canção fala-nos da inevitabilidade do tempo, do amor e da memória — tal como a praça, que agora se despede para dar lugar a uma nova arena, mas que carregará consigo a alma de tantas tardes de glória e continuará a ter espetáculos tauromáquicos.
“You must remember this…” — e Alcácer, com esta despedida, assegurou que o seu nome jamais será esquecido. Porque o tempo passa, mas a arte e a coragem ficam.
Tal como no filme “Casablanca”, em que cada gesto, cada palavra e cada silêncio carregam emoção, também em Alcácer cada ferro, cada pega e cada aplauso tiveram o sabor de despedida e a promessa de futuro.
Amor, Glória e Coragem, juntamente com os deuses da tauromaquia e do Trovão
“It’s still the same old story, a fight for love and glory.”, e foi esta luta que se experienciou em Alcácer na última corrida da praça enquanto praça antes de ser Arena Multiusos. Viu-se a coragem dos forcados face à bravura dos touros e a essência da arte do cavaleiro, tudo com emoções fortes no público.
O tempo passou, mas a essência manteve-se. Como na música, o amor e a glória continuam a ser o que dá sentido a esta história que nunca acaba.
Foram os deuses da arte e da tauromaquia — talvez até Morante, que parece ter abençoado Portugal como o Papa quando cá vem —e ainda deus do Trovão e dos ecos da eternidade, que quiseram que se fizesse mais uma. A final. E logo em Alcácer, na Feira Nova de Outubro, a feira franca de Alcácer.
A nostalgia das margens do Sado com público nostálgico, mas critico
Enquanto na última corrida o ambiente foi de festa e comemoração, de aproveitar os “últimos cartuchos” com alegria e celebração, esta segunda trouxe outro espírito. Não faltou qualidade técnica e o saber resolver touros mais complicados, mas o ambiente foi diferente: ouviu-se o compasso grave da melancolia e até as palmas festivas ao som de dos pasodobles mais conhecidos não soaram como soaram na corrida de junho. Eram palmas mais pesadas.
Porque nesta oportunidade rara de mais uma tarde, reinou a nostalgia. Foi como se o trovão tivesse ecoado uma última vez pelas margens do Sado, deixando atrás de si não apenas memórias, mas também a certeza de que a eternidade da praça e da festa continua a viver nos que a presenciaram.
Apesar do ambiente nostálgico, o público estava mais crítico e audível, algo diferente do público de Alcácer, que costuma comover-se com os seus heróis. Mas a ânsia de aproveitar cada minuto deu força a gritos por vezes desnecessários e fora de contexto.
A nível de número de espetadores, como sempre na cidade (antiga vila) de Alcácer do Sal, as entradas não dececionaram. Três quartos fortes. Mas muito fortes mesmo! E estava pronta a festa a começar!
Os heróis da última sessão
Seis cavaleiros compuseram o elenco deste enredo cinematográfico: Ana Batista, João Moura Caetano, Andrés Romero, Luís Rouxinol Jr., Paco Velásquez e António Ribeiro Telles Filho.
No lado das pegas, dois grupos de forcados — Lisboa e Alcochete — deram corpo e alma à valentia coletiva. Se em “Casablanca” a resistência francesa surge como metáfora da coragem, aqui foram os forcados que, frente aos toiros de Santa Maria, escreveram a parte mais pura do guião: a entrega despojada, o enfrentamento de peito aberto, a vitória coletiva.
E como na canção “As Time Goes By” do filme “Casablanca”, que nunca envelhece, esta corrida foi o retrato do eterno: o amor à arte que resiste ao tempo, às mudanças e às despedidas. Porque, como em “Casablanca”, a verdade taurina também se resume a uma ideia simples: sempre haverá praça, toiros e coragem — “You must remember this / A kiss is still a kiss / A sigh is just a sigh / The fundamental things apply”.
O início da versão taurina de Casablanca
Para começar, e antes das homenagens, Luís Miguel Pombeiro disse algumas palavras de agradecimento pelos seus anos em Alcácer com a empresa Ovação e Palmas, e ao povo de Alcácer que sempre o apoiou em todas as situações: “Por isso, a próxima Arena Multiusos, que terá teatro, concertos e cinema, será realidade, apesar da oposição ao executivo local não ter sido unânime neste apoio às tradições e dinamização cultural”. Fez também agradecimento à Santa Casa da Misericórdia de Alcácer do Sal e ao Município e União de Freguesias de Alcácer do Sal e Santa Susana, nas pessoas dos presidentes Vítor Proença e Arlindo José Passos, respetivamente, assim como a António Nunes.
“Hoje despedimo-nos da praça como a conhecemos, e deixo referência especial à família Núncio, que foi ela quem a construiu. Daqui a 12 dias temos eleições, e só não se troca de clube. Temos de defender quem defende as nossas opções de vida e o melhor caminho para o futuro da tauromaquia. Não somos de direita nem de esquerda, somos pela defesa da Festa. Somos pela Tauromaquia.”
Seguiu-se homenagem a Ana Batista, a segunda mulher a tirar alternativa num mundo de homens. A empresa Tertúlia Óbvia, representada pelo empresário José Luís Zambujeira, e a Câmara Municipal de Alcácer do Sal, representada pelo atual presidente Vítor Proença e candidato à Câmara de Santiago do Cacém, entregaram, juntamente com o cabo dos Amadores de Lisboa, Pedro Maria Gomes, as homenagens.
Foi um momento nostálgico e de reflexão da Festa em Alcácer, de forma positiva e que já deixa saudades.
E foi impossível não recordar “Casablanca” e a sua melodia intemporal ao nos lembrarmos de todas as tardes em 25 anos que Ana Batista esteve na velhinha.
Porque também em Alcácer “it’s still the same old story, a fight for love and glory”. O tempo passa, mas a emoção, a arte e a coragem resistem, como notas que ecoam para sempre. É uma luta por amor e glória e esta praça sempre teve poder de conceder os dois!
Ana Batista: A Ingrid Bergman da Praça
Ana Batista, homenageada pelos 25 anos de alternativa, foi a Ingrid Bergman da tarde: presença luminosa, emoção na medida certa e uma elegância que se eterniza no tempo.
Ana Batista começou com algumas dificuldades nos compridos e não conseguiu cravar nas primeiras tentativas. Mas a sua vibração chegava às bancadas com apoio de palmas.
Com hesitação no primeiro curto, encontrou a relação de lide melhor com o seu oponente e percebeu-o.
Chegou à performance a que nos tem habituado neste ano de comemoração da sua carreira e fez sururu nas bancadas.
Terminou com um palmito de classe e ovação e elevação, após uma primeira tentativa de palmito que acabou por cair devido a ter sido batido num outro ferro.
João Moura Caetano: O Humphrey Bogart de Alcácer
João Moura Caetano, o Humphrey Bogart deste guião, entrou com a gravidade de quem domina a cena: precisão, classe e a firmeza de quem sabe que “sempre lhes resta Paris” — ou, neste caso, sempre lhes resta Alcácer na memória. Foi noir no porte, certeiro no tiro e na classe, entrou com aquele ar de protagonista que não precisa de levantar a voz para dominar a cena.
Fez o que pôde e não pôde face a um touro sem qualquer tipo de intenção de investir, estando mais interessado nas tábuas e no que se passava atrás delas, com clara querença e uma inacreditável mansidão para um espécimen deste estar numa praça destas.
Moura Caetano fez um brilharete nos curtos com o seu temple e carisma únicos. No final, partiu para um palmito de excelência, mas apesar dos pedidos por mais um ferro, o touro já tinha caído por falta de força e capacidade. Não existiam condições.
Tanto que os forcados não tiveram “trabalho nenhum” na pega. E, já com cabrestos em praça, custou-se a levantar.
Andrés Romero: O Calor Andaluz
Andrés Romero trouxe o calor andaluz, cruzando fronteiras carregado de emoção, dando intensidade ao argumento.
Alegre, com entusiasmo e força no galope, ao estilo de algo parecido a westerns espanhóis, ao estilo de Sergio Leone. Com levadas e hermosinas, soube conquistar um público que já o tem apreciado algumas vezes na velhinha de Alcácer.
Imprimiu velocidade, giros e momentos de emoção. Romero já era conhecido do público de Alcácer, pois não era a primeira vez que atuava na “velhinha” Praça João Branco Núncio, e isso ajudou a que fosse recebido com aplausos calorosos e cumplicidade. A sua prestação confirmou a boa relação que tem com esta praça e com a afición portuguesa.
Luís Rouxinol Jr.: um dos herdeiros da história da praça
Um dos representantes da nova geração, foi o contraponto juvenil, a chama que lembra que a história continua.
Teve uma prestação de qualidade, como tem sido comum nesta sua temporada sólida e de alto nível. Facilmente encantou o público, tanto nos compridos como nos curtos.
Terminou com um par de bandarilhas em perfeita homenagem a dois dos grandes utilizadores desta sorte: o seu pai, Luís Rouxinol, que ainda na corrida da PIMEL, na mesma praça, teve uma atuação espetacular, e o saudoso Joaquim Bastinhas, que tanto era adorado e reverenciado pelos alcacerenses.
Na volta à arena, trouxe o cavalo Aquiles à arena, pois esta foi, a condizer com a Praça João Branco Núncio, a última vez do mesmo em funções tauromáquicas. Após mais de 600 touros toureados, dentro e fora da nação lusa, foi entregue a um merecido descanso. Foram 13 temporadas no ativo, e foi aplaudido nas bancadas, com um Rouxinol Jr. emocionado a soltar a cabeçada e, simbolicamente, o cavalo Aquiles.
Paco Velásquez: destemido em tarde de emoções fortes
Paco Velásquez, com garra e determinação, assumiu o papel do destemido aliado, fiel à sua identidade.
Começou por brindar à ganadaria Passanha, um gesto que foi sentido e sublinhado pelas bancadas.
Teve uma atuação de muito boa nota, com um público que o recebe sempre bem.
Começou com solidez e firmeza nos compridos e, nos curtos, seguiu a qualidade.
Com as suas levadas saltitantes, entusiasmou ainda mais o público.
As sortes foram medidas, sem precipitação, mas sempre com impacto visual.
António Ribeiro Telles Filho: futuro da festa na última sessão da velhinha de Alcácer
António Ribeiro Telles Filho, com o peso da herança e a coragem da juventude, foi a prova de que o guião se reescreve sempre, geração após geração.
O jovem cavaleiro voltou a provar porque é um nome em ascensão dentro de uma das famílias mais conceituadas da tauromaquia. Ter sido ele a encerrar a última corrida de Alcácer do Sal é um sinal claro de que há futuro na Festa Brava. A sua temporada tem sido de bom nível, repleta de atuações de grande nível, e desta vez não foi exceção. Mesmo com o público já fatigado pelo avançar da corrida e tentativas da pega de cernelha, conseguiu captar atenções e deixar a sua marca.
António Ribeiro Telles Filho conseguiu conquistar o público e animar o público. Esteve bem nos compridos, esteve também muito bem nos curtos.
E usou agora a técnica da homenagem a seu pai, que mostra também a sua irreverência juvenil, que é de atirar o tricórnio ao touro para o fazer investir mais e resultou com bravura. E o público foi ao rubro nesse momento.
Valentia e persistência de Lisboa e Alcochete numa despedida única
Os Forcados de Lisboa entraram em praça determinados e conseguiram consumar a primeira pega logo à primeira tentativa, o que levantou entusiasmo imediato nas bancadas. Mais tarde, tiveram de lutar mais para impor-se, conseguindo apenas ao quarto intento, numa pega em que a persistência foi tão aplaudida quanto a concretização. O momento mais marcante surgiu com a pega de cernelha, que só resultou após várias tentativas. Foi longa e exigente, mas conseguiram consumar.
Do lado dos Forcados de Alcochete, a eficácia marcou o início da atuação, ao consumarem a primeira pega ao primeiro intento. O público reconheceu a coesão e vibrou com a segurança do grupo. Na segunda saída repetiram o feito, também ao primeiro intento, mostrando confiança e entrega. Apenas na terceira atuação tiveram mais dificuldades, alcançando a pega apenas ao terceiro intento. A superação e o esforço visível da formação foram acompanhados com gritos e incentivos vindos das bancadas, num ambiente de comunhão entre a arena e a assistência.
Entre porte e apatia: a atuação dos touros
Os touros foram de apresentação e porte parecidos, com cores e porte clássico deste mítico oponente do humano. O touro de João Moura Caetano foi o pior da corrida, visivelmente até para quem até não seja um aficionado com cultura e não saiba ler a espécie. Só se lembrou de investir face a um campino, com gritos de “agora?” por parte do público.
De resto, os touros cumpriram a sua função e foram os inimigos propícios a uma tarde de despedida. Mas os decibéis da bravura não chegaram de forma unânime às bancadas.
Alcácer e João Branco Núncio: Um até sempre na eternidade da praça que nunca morre
Alcácer despediu-se, mas não morreu: ficou inscrita no compasso eterno da tauromaquia, como uma canção que nunca se apaga. E a eternidade das suas tardes será mesmo isso: eterna. Em Alcácer, não foi uma despedida: foi um até sempre, porque na tauromaquia o tempo nunca se fecha.”
No fim, Alcácer viveu a sua própria “Casablanca” taurina. A praça, que se despede para renascer noutra forma, foi palco de um filme irrepetível. Tal como Bogart e Bergman, também os aficionados saíram com a sensação de que nunca esquecerão esta tarde. E, se houvesse frase final, talvez fosse: “We’ll always have Alcácer”. “Teremos sempre Alcácer”. E será essa a nossa lembrança. E até recordamos quem foi connosco.
E como diria John Wayne: “Courage is being scared to death, but saddling up anyway.” “”Coragem é estar apavorado, mas montar o cavalona mesma”. Foi essa a coragem que se viveu em Alcácer.
A praça irá voltar, não como praça, mas como Arena Multiusos. E lá estaremos para voltar a sentir a afición alcacerense. Talvez não hoje, talvez não amanhã. Mas em breve, e para o resto das nossa vidas.
E um dia, quando a praça regressar como arena, ecoará também outra frase do Duke: “That’ll be the day.” “Esse será o dia!”
Adeus minha, nossa, praça velhinha de Alcácer. Perdurarás.
Nota Importante: Por ser uma praça centenária, e por ter sido palco de uma despedida especial, importa sublinhar a sua força simbólica uma vez mais. O povo de Alcácer respondeu, como sempre, ao chamamento: pode não ter esgotado todas as bancadas, mas encheu a praça de alma e sentimento. Aliás, faz isto em todas as corridas. A população de Alcácer e todos os aficionados que se deslocam.
Esta é, por isso, uma praça com uma tendência muito forte — emocional e popular. A crónica e galeria serve como homenagem. Mas é preciso também fazer homenagem ao seu público, que marcou presença nesta última corrida com a mesma paixão de sempre.
Brevemente será publicada uma galeria humana, de índole social, que mostrará os rostos, os sentimentos e as verdades dos aficionados nesta tarde tão bonita de dia 5 de outubro de 2025.




