Beyoncé merecia o Grammy para Melhor Álbum Country? É a pergunta que vou tentar responder, recorrendo ao conhecimento das origens do género musical country e à comparação com os outros nomeados.
O álbum vencedor foi “Cowboy Carter” de 2024, o oitavo da Beyoncé gravado em estúdio. Os outros nomeados foram Post Malone (“F-1 Trillion”), Kacey Musgraves (“Deeper Well“), Chris Stapleton (“Higher“) e Lainey Wilson (“Whirlwind“). “Cowboy Carter” é um álbum para o qual não podemos olhar para o lado. Eu diria até que atualmente, e ainda mais com a passagem de tempo, será um álbum algo incontornável para ouvintes de música no geral. Não pela sua qualidade enquanto álbum de country, mas pela sua importância agora nestes últimos anos de country. E vou passar a explicar o que é que quero dizer com isto, comparando rapidamente com outros nomeados.
O que se tem dito acerca deste álbum costuma ser uma de duas coisas. A primeira: “Ah,e tal, a Beyoncé, ela até é do Texas e tal, e pode salvar o country”. Isto tem sido um ponto recorrente e vamos já aqui acabar com este argumento. Porque a música country não precisa de ser salva. Agora, ela pode ser melhor espalhada a um nível mundial. Enquanto nos EUA é um dos maiores géneros musicais, em Portugal tem tido alguma fraqueza, e aqui tenho de dar uma consideração enorme a artistas que o trouxeram, como o Zé Amaro, juntando um estilo musical mais português por motivos comerciais, e agradecer à Joana Almirante e à Nena pelo projeto Dois Pares de Botas, com uma música country em português original, “Diz-se aí…” que é incrível. E também pelos seus espetáculos com covers das suas próprias músicas e de outros grandes nomes, Dolly Parton, John Denver, Johnny Cash, entre outros. Mas o estilo musical continua a juntar milhões de dólares e ouvintes, continua a ter uma cultura muito própria, desde merchandising a filmes, e a tudo em que está inserido. Até séries já teve sobre ele, como é o caso da série “Monarch”, com Trace Atkins e com o Susan Sarandon. Ou seja, é um género enorme nos Estados Unidos.
E, desta forma, posso dizer que, para estar à tona de água e a respirar, não precisava minimamente de artista Beyoncé. Agora, para novas gerações e para outros países, nestas situações podemos dizer que este álbum ajudou o country. Mas não o salvou, porque este não precisava. Temos até o exemplo do George Strait, o Rei do Country, um nome que não tem sido assim muito forte em Portugal, apesar de ser um artista que já vendeu muitos álbuns, discos de ouro, e é um artista que fez, à data de hoje, o espetáculo com maior número de audiência em solo americano: 110 905 pessoas no Estádio A&M’s Kyle Field no Texas em 2024. Por isso, o country está vivo e recomenda-se.
Outra perspetiva tem sido dos próprios fãs do género, onde eu também estou inserido, que tiveram um argumento que não me agradou de todo e que é exatamente o contrário. “Beyoncé irá destruir o country e trazer pessoas urbanas que não gostam muito de country nem do mundo da estrada aberta, e então teremos pessoas mascaradas de cowboy sem perceber nada da cultura Western”. É uma cultura que eu sou muito próximo, devido à forma como fui criado na minha infância, e sou a única pessoa, às vezes, em largos quilómetros, com uma fivela como deve ser. Contudo, acho que a Beyoncé não arruinou nada e o álbum está bem construído. É um álbum que tem boas musicalidades e traz alguns elementos do country mais clássico em algumas tonalidades musicais e também folk e gospel. Contudo, também acrescenta algumas partes mais eletrónicas, mais rap, que nada tem a ver com o country, e que por isso mesmo, não deveria ter ganho o Grammy para Melhor Álbum Country do ano. Posso-vos dizer até que a Beyoncé não fez o álbum sozinha, teve produtores, e um desses produtores é a famosa Dolly Parton, o nome que não devemos esquecer nem na indústria musical no geral. E se Dolly Parton aprova, eu nunca poderia desaprovar, enquanto fã de country, um álbum destes.
Vejamos os outros álbuns:
“Higher“ – Chris Stapleton
Stapleton entrega um álbum forte com a sua voz nostálgica, com temas de amor, desamor e redenção, Como um álbum de cowboy deve ter sempre. O espírito tradicional do country vive nele.
“Deeper Well“ – Kacey Musgraves
Sequência do aclamado “Star-Crossed”, o álbum continua a jornada emocional de Kacey com letras introspetivas sobre recomeço e cura. Sons atmosféricos e toques pop-country definem o trabalho, mas as letras introspetivas estão no seio do seu trabalho. O tema “The Architect” é a grande música deste álbum mas a Kacey que ainda vai ter muito que crescer enquanto artista, e está no caminho ótimo. Certamente ainda lançará temas de alto interesse e com letras fascinantes.
“F-1 Trillion“ – Post Malone
Embora conhecido pelo rap e pop, Malone apresenta um álbum com fortes influências country, acústico e emocional. Letras sobre saudade, crescimento e origens definem este inesperado investimento no género que Post Malone fez há uns anos. Ele tem estado imparável, deu uma volta de 180 graus e ficou rendido a este tipo de vida country e mudou toda a sua carreira naquilo que poderia ser considerado uma aposta que poderia não ter ganho, porque o público podia não validar esta sua viragem musical. Mas conseguiu. E por isso, é normal que Post Malone tenha um lugar muito forte nos corações dos fãs de country.
“Whirlwind“ – Lainey Wilson
Uma celebração vibrante do country moderno com pitadas de rock dos anos 70. O álbum reflete a personalidade ousada de Lainey, com letras cheias de autenticidade do sul americano. Quanto a se deveria ter ganho ou não, tenho de admitir que sou algo suspeito, porque sou um grande fã de Lainey Wilson e acho o seu último álbum “Bell Bottom Country” completamente perfeito, desde a letra à musicalidade. Mas o deste ano não foi tão forte. Apesar disso, chamo a atenção para o tema “4X4XU” do álbum “Whirlwind”.
Outra coisa também que posso dizer sobre Beyoncé é que falta muito, de forma geral, o storytelling, esse ato de contar histórias com personagens e estrutura de narrativa em canção. Temos algo de storytelling no “16 CARRIAGES”, mas faltam letras dramáticas e dramatúrgicas, em detrimento de musicalidades que ela tenta impingir como sendo do country. Curiosamente, o cante alentejano também tem muito disso, baseado em storytelling do quotidiano, de profissões e de lugares. E, ainda mais curiosamente, o heavy metal também tem muitas estórias, especialmente no heavy metal baseado em lendas da mitologia nórdica ou da mitologia grega, que contam as histórias de todas essas personagens.
Infelizmente, um álbum que foi demarcado pelo storytelling foi de Zach Top, “Cold Beer & Country Music”, e foi esquecido para estas nomeações. Um trabalho com sonoridade neotradicionalista do género, evocando o country dos anos 90 e artistas como Randy Travis e Alan Jackson. É uma autêntica aula de country, com diversidade que vai desde baladas sentidas a temas animados de dança de baile de saloon e rodeos. Cada tema conta uma história e destaco o tema “Never Lie” sobre alguém que não conta mentiras, mas passa os minutos a dizê-las à sua antiga amada, incluindo a esmagadora mentira “Eu desejava dizer que sinto a tua falta, mas sabes que nunca minto”. Mente e muito. E isto é storytelling musical de country no seu melhor.
Beyónce também ganhou o Grammy para Melhor Dueto Country com Miley Cyrus (“MOST WANTED”) e apesar de Cyrus ser muito mais country do que Beyoncé alguma vez será, perderam a oportunidade de dar a quem mais merecia. Acho que este Melhor Dueto deveria ter ido para Post Malone e Morgan Wallen (“I Had Some Help”), que fizeram um êxito total, quebrando mais recordes e barreiras da música country do que Beyoncé conseguiu fazer. Em Portugal, então, chegou a dar em simultâneo em diversas rádios.
Quanto ao Grammy de Melhor Música, ganhou “The Architect” de Kacey Musgraves. Um tema de grande pujança psicológica e extraordinariamente bem escrito. Mas uma música tem estado esquecida e era a altura ideal para a imortalizar: “I Am Not Okay”, de Jelly Roll. Jelly Roll está magnífico nesta interpretação, um produto artístico com muito amor e mágoa, e que ainda fez uma participação especial na série “Tulsa King”, produzida por Taylor Sheridan e com protagonismo de Sylvester Stallone. Acho que falta aqui fazer essa menção e estou contente por fazê-la aqui. Sugiro até que oiçam a partir deste link https://www.youtube.com/watch?v=Qop5XLgwkNc.
Em conclusão, se eu acho que a Beyoncé deveria ter ganho o Grammy para Melhor Álbum Country? Eu posso afirmar o seguinte: se ganhasse o prémio de melhor álbum no geral, eu não levantaria qualquer questão, porque ela conseguiu levar o country a um público ainda maior e insere-se noutros géneros. Mas este género musical não precisava de qualquer ajuda, apesar de quem vos escreve saber valorizar o facto de que as pessoas de Portugal podem apreciar e ficar a ter mais conhecimento a partir de “Cowboy Carter”.
Mas o Melhor Álbum Ccountry está relacionado com a qualidade e consistência de um álbum enquanto detentor de canções do estilo country. E o álbum dela não tem só estilo country. Por isso, eu acho que poderíamos ter dado um prémio a outro, visto que os Grammys são mediáticos e davam palco a um outro artista mais genuíno. Poderíamos ter dado a oportunidade a outro cantor, a uma Kacey Musgraves ou a Chris Stapleton. Ele, que é a personificação em pessoa do country atualmente, e também tem algumas canções que passam mesmo nas rádios mais comerciais e mais pop portuguesas. Ele não é um turista musical no country, como a Beyoncé foi.
O álbum tem temas como “YA YA”, que não são de todo country. Tem relação com origens tribais africanas, mas não afro-americanas ou americanas. Bebe do rap, mas nunca do country. E o country está enraizado na cultura americana e não africana tribal. Foi um jogo de cintura da própria cantora para diminuir o country, mas engana poucos.
E, mesmo noutros temas, existem misturas e batidas que são lugares-comuns do pop, e misturas também do rap que não tornam o álbum, no seu todo, um álbum do género musical pelo qual ganhou o Grammy.
Esperemos pelo próximo ano. E que ganhe o mais verdadeiramente cowboy, no sentido genuíno da palavra.