Paulo Caetano, o Sinatra dos Cavaleiros, abriu a cápsula do tempo no Campo Pequeno, numa Lisboa que ganhou um filtro vintage, retro e de alegria, como só o próprio sabe. Uma nostalgia que nos fez a todos recuar no tempo, do qual Caetano soube ser maestro e dirigir os compassos de uma era taurina de ouro.
Texto: André Nunes e Rui Lavrador / Fotografias: Carlos Pedroso
Paulo Caetano regressou, ontem, dia 11 de julho de 2025, ao Campo Pequeno, para uma corrida de touros muito especial, na qual se celebraram os 45 anos da sua alternativa. Com dois terços fortes, avizinhava-se uma noite a não esquecer, com várias dinastias de cavaleiros presentes no cartel.
Assim, após as cortesias, Paulo Caetano foi homenageado por distintas entidades no centro da arena. Incluindo de figuras da realeza portuguesa, uma honra justa vista que estamos a falar de alguém a que podemos chamar realeza tauromáquica.
Paulo Caetano: A elegância intacta do mestre dos mestres que guarda o tempo
Um touro diferente, com pelagem chamativa, que se mostrou com algumas nuances comportamentais que o ginete rapidamente entendeu. Soube receber bem o touro, sabendo sempre evadir-se com elegância e suavidade, mantendo o suspense a escassos milímetros do touro e revelando, com confiança, o equitador de excelência que é. Os compridos foram cravados com classe, no momento certo e com grande oportunidade.
Nos curtos, mudou a montada para o Campo Pequeno, onde, impulsionado pelo calor do público, iniciou com dois ferros que animaram e fizeram brilhar a sala. Assim, soube medir com rigor as sortes de frente diante de um touro rápido, citando com maestria e mantendo o equilíbrio entre risco e estética. Demonstrou, como sempre, lucidez técnica e domínio total do tempo, com um público que nunca o esquecerá.
No final, nos agradecimentos a cada setor, com alegria e popularidade, o cavalo parecia deslizar sobre o gelo — majestoso, como quem domina o tempo nos seus ferros. Como quem a areia e a luz jamais esquecem.
A sua lide, frente a um touro da sua ganadaria (o único da noite) foi uma belíssima forma de assinalar o seu percurso. Baseada toda ela na elegância, desde a cravagem comprida à curta, rematando com um belíssimo ferro curto, cravado com reunião ajustada, cite cambiado em terrenos de dentro. Público rendido a um toureio estético, eficiente e sem necessidade de artifícios.
Obrigado, Mestre, por reviver tempos de infância.
António Ribeiro Telles: O guardião da tradição
António Ribeiro Telles enfrentou um touro Charrua (tal como os restantes 4 que a seguir foram lidados pelos seus colegas) e teve uma atuação em crescendo, nunca abdicando do classicismo que o caracteriza.
Iniciou a sua atuação com algumas evasões sobre o oponente, tentando captar-lhe a atenção, que inicialmente se mostrava dispersa. Foi necessário um chamamento mais firme para o trazer ao encontro do cavaleiro, fixando-se mais nos peões de brega, o que exigiu maior concentração e domínio técnico.
Com o sentido de missão cumprida a que já habituou o público, Ribeiro Telles manteve um forte manuseamento das montadas perante o adversário. Os compridos, apesar de alguns momentos associados à brega, renderam aplausos e encantaram a assistência, especialmente quando António começou em crescendo, que o público ‘glamoroso’ daquela noite não deixou passar ilesa.
Com expressões populares e o sorriso característico bem demarcado, protagonizou depois uma lide de curtos marcada por gritos de “bonito” e “bravo”. Levou o a sua concepção toureira mais longe. Apesar de um ligeiro prolongamento, demonstrou a sua arte e capacidade. Os dois últimos curtos foram os melhores da sua atuação, com um grande valor.
João Moura Caetano: Firmeza e estética com sangue de herança
João Moura Caetano superou-se no Campo Pequeno, em dois sentidos. Primeiro na praça com este nome, depois com o cavalo que tem esta identificação. Templado, com uma expressão de quem não queria perder nada nesta noite e de que dali só sairia com o triunfo no bolso. E Moura Caetano consegui-o, com o seu toureio de cercanias, de recorte estético, destacando três curtos de boa nota.
Para começar, dobrou-se o touro com enorme capacidade: um verdadeiro brinde à herança de qualidade do pai. Um primeiro comprido sem falhas deu início a uma crescente ligação com o público da casa-mãe da tauromaquia, que vibrava a cada momento com a solidez da sua atuação.
Moura Caetano soube puxar o brilho ao mais pesado touro da corrida, demonstrando inteligência toureira. Os curtos mantiveram a nota positiva do seu toureio, entrelaçados com hermosinas bem desenhadas, num ritmo que mostrou um cavaleiro em grande forma — e que se recomenda aos da sua classe.
Com um ferro extra pedido pelo público, enfrentou de frente o oponente num dos momentos altos da noite. A insistência da audiência por mais um ferro foi evidente, mas o diretor de corrida recusou, ouvindo fortes assobios em sinal de desagrado.
Marcos Bastinhas: Coração, raça e irreverência com assinatura própria
Recebeu o touro à porta gaiola, após brindar a lide com um olhar para o topo do Campo Pequeno e para o céu, numa sentida homenagem ao seu pai — amigo próximo da família Caetano. Antes, havia brindado também a Paulo Caetano, apeando-se do cavalo. A emoção estava no ar, mas também a determinação.
Apesar de o touro não ter saído de imediato para o seu lado, preferindo outras distrações, Bastinhas cravou o primeiro comprido sem tardar, após dobrar-se muito bem com o oponente no centro da arena. Citou de praça a praça, e seguiu-se um ferro de grande nota, que arrancou palmas seguras da bancada. O segundo ferro comprido foi de excelente nota também, de praça a praça.
Com uma hesitação no primeiro curto, rapidamente se recompôs para uma cravagem de verdadeiro artista — como, aliás, toda a sua postura o foi ao longo da noite. Curto após curto, com grande qualidade e ousadia toureira, entre as suas míticas piruetas, começou a dominar as emoções da sala mais tradicional de Lisboa. Um toque na montada, na cravagem do segundo curto, levou a lide ali a um momento menos bom.
O diretor de corrida não lhe concedeu música. Ainda assim, os entendidos no toureio, e no seu toureio em específico, concederam-lhe as palmas.
O touro tinha “teclas”, Marcos teve a ambição de ali sair apenas com o conclave rendido a si. Após um ferro de palmo que poderia ter sido o clímax perfeito, o melhor ainda estava para vir: com petição do público, cravou um par de bandarilhas. E, nesta noite especial, foi o emblemático par de bandarilhas — numa sorte bem desenhada e com qualidade, de frente, a fechar a actuação, após a qual apeou-se do cavalo saindo sob forte ovação.
Com a sua personalidade de artista e heroísmo, Bastinhas deu volta à arena com o valoroso forcado. E foi irreverência até fim. Ao dar a volta à arena, irreverente, ‘tributou’ o tricórnio e flores ao director de corrida. Marcos Bastinhas tem aquilo a que noutras culturas se chama ‘star quality’. E carisma!
Duarte Pinto: temple e elegância
Antes de mais, destaque para a exuberância e beleza da sua montada de saída, que em muito contribuiu para a imagem cuidada e firme do seu desempenho. O seu toureio mais cuidado – mantendo o classicismo, este ano, já notado desde Alcácer, revela laivos de brilhantismo que aqui voltaram a evidenciar-se. O seu toureio no Campo Pequeno foi feito de linhas limpas, compasso justo e domínio do tempo com elegância e verticalidade.
Apenas uma reunião menos ajustada, contudo cumpriu a gosto do público presente neste espaço tão português. O touro, com teclas vincadas e boa perceção, permitiu-lhe mostrar qualidade, num registo clássico mas cheio de intenção.
Esteve num patamar positivo, principalmente na forma como mudou o touro de terrenos, como desenhou as sortes e como as tentou executar.
Miguel Moura: Juventude com precisão e emoção bem doseadas
Miguel Moura esteve num plano muito bom, recebendo o touro com uma sorte gaiola bem executada, sob gritos de “Vai Miguel!” vindos da audiência. Uma sorte do género flecha — veloz, emotiva e suave, aplaudida por todos. O segundo comprido também elevou a fasquia: de frente, a curta distância, confirmando o à-vontade do jovem cavaleiro. E, a partir daí foi criando um toureio de muito bom nível, principalmente na forma como levou sempre o touro ‘embebido’ na montada, como se de uma muleta se tratasse.
O primeiro curto foi igualmente frontal, com ótimo cite, embora o ferro tenha ficado um pouco lateralizado. Ainda assim, foi bem pensado e executado, dentro do que se espera de Miguel. Houve uma hesitação num dos curtos seguintes, mas rapidamente se reagrupou e voltou à forma com que encantou nesta noite de homenagem a Paulo Caetano.
Miguel Moura esteve em alta — quer na receção, quer nas notas de toureio com que presenteou o público. Também nos ladeares foi exímio, com capacidade de suspense e de conquista tanto do oponente como da plateia. Num toque no seu ladear final, mostrou sangue-frio na forma como resolveu a situação — com serenidade.
O jovem Moura voltou a ter motivos para sorrir nesta praça, algo que se tem sucedido nas suas últimas corridas aqui realizadas.
Forcados: bravura em crescendo numa noite de homenagens
A noite também se fez de força, entrega e coordenação nos terrenos dos forcados. Vasco Ponce, dos Forcados Amadores de Montemor, foi o primeiro a dar a cara. Após um primeiro intento em que o touro pareceu escorregar, seguiu-se um segundo esforço isento, com o próprio a dobrar-se sobre o oponente e este a ir sobre ele. Foi apenas ao quarto intento, pelo forcado António Cecilio, que a valentia dos forcados superou a resistência do touro.
Seguiu-se Nuno Fitas, dos Forcados Amadores de Lisboa. Há que destacar o posicionamento exemplar proporcionado pelos profissionais da brega, que deixaram o touro bem colocado. A pega foi consumada ao segundo intento, de forma decidida.
José Maria Pena Monteiro, de Montemor, enfrentou um touro que tardou a responder à chamada. Ainda assim, foi ao segundo intento que consumou a pega com firmeza, num momento de superação técnica.
Duarte Mira, também a representar os Forcados Amadores de Lisboa, viu-se forçado a recorrer ao segundo intento, após um “derrapanço” inicial. Mostrou sangue-frio e persistência depois.
António Pena Monteiro, dos Forcados Amadores de Montemor, protagonizou uma das pegas mais intensas da temporada até ao momento. Agarrou-se ao primeiro intento, mas numa fase inicial ficou apenas num dos pitons do touro. Ainda assim, resistiu com bravura até às tábuas do lado direito do oponente, onde os ajudas acorreram com coragem para concretizar a pega. Um momento de entrega total, a marcar a noite.
Por fim, o último forcado da noite, João Varanda dos Forcados Amadores de Lisboa — brindou ao Secretário de Estado do Turismo, com o desejo de que “a tauromaquia volte a ser uma das bandeiras do turismo da nossa nação”. A primeira tentativa não foi totalmente concretizada, mas foi “agarrada pela vida”, revelando coragem e determinação. Ao segundo intento, o momento ganhou força, coesão e perfeição, encerrando com dignidade e emoção a participação dos grupos de forcados nesta corrida especial.
Touros de Charrua e Paulo Caetano com boa nota
Os touros – quer da ganadaria de Paulo Caetano quer de António Charrua – cumpriram bem, quer em apresentação quer em comportamento, embora com diferentes matizes, permitindo a todos os cavaleiros executar o estilo de toureio do seu agrado. O ganadeiro de Charrua deu inclusivamente após a lide do 6º touro da corrida, autorizada pelo diretor de corrida.
Paulo Caetano comandou o tempo e recuámos todos para uma época dourada
Foi uma noite de estilos e vontades, onde o toureio se mostrou múltiplo, e Lisboa reconheceu em cada cavaleiro um idioma próprio. Mas foi o regresso de Paulo Caetano que deu sentido ao todo. Como o ponto de partida de uma espiral — o centro de gravidade de uma noite em que o passado e o presente se reuniram.
Caetano já não é presença regular nas temporadas taurinas e isso não se observa a olho nu, pois o tempo parece não passar com ele. Mesmo não sendo presença regular todas as noites quentes de verão por essas praças afora foi, nesta solene e única noite, tão exímio como sempre foi.
Estivemos, de facto, diante do Frank Sinatra dos cavaleiros. Icónico e mítico. Talvez nem o próprio Sinatra, na sua última vénia no seu último espetáculo num evento privado, teve tantos aplausos como Caetano neste regresso por uma noite.
Corrida dirigida por Ricardo Dias, assessorado por Jorge Moreira da Silva e com José Henriques no cornetim.




