Setúbal torna-se faroeste com “FOICE”: um western alentejano, que estreou em abril, com sotaque, mas com as míticas armas, copos e dinamite do Velho Oeste. Uma crítica social e económica que finalmente alguém teve coragem de executar, 51 anos após a Revolução do Cravos e com novos antagonistas de fato e gravata a aparecer.
Texto: André Nunes / Fotografias: CMS (Câmara Municipal de Setúbal)
Uma crítica que surge da companhia teatral Teatro Estúdio Fontenova, localizada em Setúbal e com criação em 1985. O site Infocul.pt assistiu a uma das sessões deste exemplar espetáculo no dia de ontem, 9 de abril de 2025 pelas 21h, no Fórum Municipal Luísa Todi, onde Setúbal virou um filme do Sergio Leone mas bem ao estilo alentejano, numa comparação que faz todo o sentido. E é de admirar que ninguém se tenha lembrado antes, até porque existem memes e piadas sobre o “AlenTexas”.
Setúbal torna-se palco de um autêntico Spaghetti Western
A maior das metáforas surge logo com um vídeo que, propositadamente, parecia retirado dos filmes de Spaghetti Western dos anos 60 e 70, como se viesse do universo do “Trinitá”, com Bud Spencer e Terence Hill. Com um anti-herói que parece mais preocupado com o seu bem-estar, mas que derradeiramente e acompanhado por cantigas de luta e armas de fogo, faz o sacrifício para impedir que o “progresso” que nos tapa a vista interfira com a vida das pessoas, suas raízes e forma de vida.
A nossa forma de vida (e cultura), pelo Alentejo, está ameaçada pelos novos senhores do capitalismo, e o espetáculo é a pièce de résistance, tal como os camponeses em “Os Sete Magníficos”. Ou a resistência que é melhor começarmos a preparar.
O espetáculo começa com o vídeo inspirado diretamente pelos westerns, mas a paisagem do Oeste torna-se a das nossas praias que eram terrenos por desbravar até há duas décadas atrás.
As praias selvagens desapareceram em nome do “progresso”
Agora estão expostas ao egoísmo do capital e loteamento desenfreado. Neste vídeo inicial, a música de westerns, totalmente em estilo da lenda genial chamada Ennio Morricone, dá o mote ao que seriam 75 minutos de murros no estômago e novas formas de mecanismos narrativos em palco. Aliás, a banda sonora de Spaghetti Westerns pulsa por toda a peça, como sangue nas veias da narrativa.
No centro, a narrativa expõe comunidades que vivem num tempo em transição, um tempo em que tudo o que era certo começa a deixar de fazer sentido. As personagens pertencem a um mundo que está a desaparecer, tal como as tabernas e as dunas no Alentejo estão a ceder ao avanço de um “progresso” que não é feito para os que lá nasceram. Enfrentam o dilema de manterem-se fiéis a uma forma de vida que já não tem lugar no novo mundo que está a chegar.

Uma estética única com muitas referências cinematográficas
“FOICE” quebra com a estrutura clássica do teatro português ao adotar uma linguagem fragmentada, mais próxima do cinema. A peça recorre a flashbacks intensos que não explicam apenas o passado, pois revelam feridas, traições e dilemas que continuam a moldar o presente.
Foi talvez a primeira vez que vi um flashback no teatro português, e insere-se na narrativa com muito fundamento.
O tempo não avança de forma linear: salta, volta atrás, paralisa. Há momentos em que o espetáculo parece parar completamente — os chamados “staredowns” antes e um duelo de pistolas — onde o silêncio é tão tenso quanto um duelo num filme prestes a explodir. Pode notar estes “staredowns”, paragens e narração voz-off em filmes como “O Bom, o Mau e o Vilão” e séries como “Os Três Duques” e “Bonanza”.
Esses mecanismos criam uma sensação de instabilidade, de um mundo prestes a ruir, onde cada olhar para o público se torna um confronto direto. A mistura de vídeo, som e presença física dá à peça um ritmo visual raro no teatro, fazendo de “FOICE” não só uma história, mas uma memória viva e contada como quem ainda sangra.

O combate cénico que amplifica a necessidade de resistência
O combate cénico também pode ser descrito como muito bem realizado, e ensaiado. Os confrontos em palco são coreografados com uma fisicalidade estilizada, que mistura o ritmo tenso de “Kill Bill” com as poses de jogos de arcade do estilo “Street Fighter” ou “Mortal Kombat”. Paragens bruscas, gestos amplificados e sons que pontuam o impacto transformam cada duelo numa cena que parece arrancada de um filme de Tarantino ou de um combate de videojogo.
Aliás, tenho de parabenizar todo o desenho de luzes e som, que com precisão acertaram sempre, seja em tiros ou explosões, em que tudo bateu certo com a ação ao segundo. Tal como todos os outros artistas que permitiram que tudo fosse possível, desde figurinos a cenários. Acrescento aqui, que o cenário remete para um Oeste que está na nossa imaginação e que podemos preencher, mas a presença de uma carroça que se desdobra em vários locais é um mecanismo cénico que resulta bastante bem.
O Bem contra o Mal, e o Antigamente contra a Modernização
Após uma introdução que deixa o público a salivar por mais metáforas entre Comporta e desertos do Arizona e outros estados, encontramos os vilões. Uma empresária e sua lacaia, à procura de terras por comprar. Ou, melhor, destruir, descaracterizar e explorar para venderem smoothies e torradas com abacate. Mas os heróis vão tentar de tudo para as impedir. Em “FOICE”, essa transformação vem em forma de empreendimentos de luxo, campos de golfe e turismo milionário; em filmes western, são os caminhos de ferro, os bancos e a lei federal. A ameaça é diferente, mas a sensação de perda é a mesma.
Primeiramente, no centro da trama está um café, inspirado em tabernas alentejanas e saloons da fronteira, a fronteira que em Portugal era a costa alentejana e vicentina, que está agora a ser deturpada com a identidade a desvanecer a cada dia que passa.
Ali, já não há tabernas nem o café típico do António. É nos dito que até as dunas foram levadas pelo capitalismo e na realidade foram mesmo, com gruas a fazer apodrecer o estado selvagem lindo da região. E até o património cultural querem comprar e devolver mas em estilo consumista e artificial.
As antagonistas perguntam a Nuno (o cowboy cantor individualista mas que quer manter a nostalgia do antigamente presente) por caminhos naquela zona. “Se soubessem os caminhos como eu sei”, responde.

O realismo de um espetáculo
Este personagem, para manter a face orgânica e realista de “FOICE”, fuma em palco. É um irreverente, até em contexto de mecanismo narrativo em teatro, porque já se vê pouco. No Alentejo, até fumar é um ato natural, orgânico. E, com esta modernização extrema, até estar no café parece mal e fumar também, e novos empreendimentos substituem a vida simples. Até a duna foi roubada. Literalmente.
Neste sentido, vemos uma personagem forasteira a contar histórias, numa utopia falhada. Um Alentejo que é a última província por domar, o último terreno por colonizar. A sombra de um Clint Eastwood alentejano, mas mais falador, que ouve vozes sobre o destino… e recusa obedecer. É ele próprio uma voz que ecoa pelas planícies do nosso país. É um fantasma, tal como os seus conterrâneos resistentes, num mundo que já não os quer. O seu tempo já passou.
“A memória é uma construção do presente”, diz-nos o atual dono do café. “Nostalgias e águas passadas não movem moinhos”. Aqui, a terra não é apenas território, é casa, é memória, é o que os liga a quem são. A luta por mantê-la é, no fundo, uma luta para não desaparecerem com ela.
Uma identidade que se perde como o espaço em si
Enquanto isso, a costa anteriormente brava torna-se palco de celebridades, de princesas e príncipes a subir o custo de vida. O que anteriormente era graça, a aparição destes famosos, agora é um martírio. Uma das antagonistas liga até ao estilista Louboutin.
Aliás, diversas vezes as pessoas reais que estão à frente de empresas milionárias são mencionadas. Não fica nada por dizer e essas pessoas, por esta nova colonização daquilo que acham que é “indígena” e “brincar aos pobrezinhos” (como foi dito numa revista há muitos anos atrás) são colocadas em causa.
A Comporta real. O Carvalhal e Tróia reais. As dunas reais. Um caso real. E os dilemas de algumas das personagens são os nossos: trair as gentes que nos viram nascer para ajudar os pais? Ter independência ou manter-nos fiéis a quem somos?
“Todos têm um preço”, exclama uma das personagens. Até que ponto se pode aguentar a luta que não dá em nada? Quantos postos de trabalho justificam o abandono da paisagem? Não, o Alentejo não é deserto, nem desterro. É terra de mouras encantadas, de sereias, de deuses hindus perdidos como ficámos a descobrir.
A “FOICE” não é só metáfora pois é, em si, também espada e símbolo. A própria foice enquanto instrumento de arma e de trabalho é comparada à espada do Rei Artur. Porque a democracia não funciona quando quem manda é quem tem dinheiro, e a foice é o símbolo da batalha armada que só Nuno está disposto a travar, visto que até providências cautelares, petições e manifestações não resultam.

Somos ladrões de “progresso” num mundo que já não nos quer
No meio desta guerra pelo novo (velho) Oeste, a sombra e ramo da azinheira são marketing, significantes de luxo, que querem agora publicitar o slow living para venderem resorts. Mas o slow living é português. Tal como a natureza, o cante, o fado, o convívio à volta de uma mesa, o vizinho do lado, os sotaques. Tudo isso é simplesmente estar. É viver. Mas também: “Não se pode travar o progresso civilizado.”
Outra das comparações entre Oeste e Alentejo nasce da tecnologia presente. Smartphones e computadores contrastam com a luta que tem de passar à ação, e revelam que a luta é difícil mesmo com tecnologia, e até é capaz de ficar mais fraca com ela.
Tal como a questão das burocracias e neologismos que contrastam com a alma de um povo. As palavras novas e estrangeiras substituem o vocabulário da terra, as casas passam de mão em mão, e o povo sente-se excluído da sua própria história.
Somos mais fantasmas do que pessoas
“Nuno, partilhaste?”, uma pergunta dirigida ao cowboy solitário do enredo, relacionada com redes sociais. É esta dualidade entre o antigamente a modernização que a peça demonstra, e que existiu no tempo dos colonos americanos e acontece agora nas nossas costas que eram tão selvagens e tão nossas.
Entre tiroteios e duelos, tudo se passa entre a última taberna e a ausência de heróis para salvar o Alentejo. E é nesta tensão que não faltam referências ao Cante Alentejano, especialmente com “Dá-me Uma Gotinha de Água” que destaca os problemas que estas enfrentam. Devido às secas anuais, já se nota falta de água que ainda é levada ao extremo com campos verdes artificiais de golf, monoculturas e piscinas.
“Não somos nada comparados com o que aí vem”, afirma uma personagem. Mais estão por chegar, para acabar com cavalos, gado, pesca e tudo que era antigo e tradicional. Para substituírem por betão, alcatrão, restaurantes vegan e carros elétricos que parecem porta-chaves de tão pequenos que são.
Os heróis puros não existem
Curiosamente, esta peça surge num momento em que séries como “1923” e “Yellowstone” também abordam esta temática, com empresas e empreendimentos a quererem destruir um rancho para venderem resorts e time shares a ricos da Califórnia e Nova Iorque. Sempre com resistência, daquela que não pode faltar.
Os heróis em “FOICE” estão entre a espada e a parede: trair a comunidade para sobreviver, ou resistir a um sistema que parece imparável?
Os heróis, se é que existem, estão longe de ser puros. São pessoas cheias de dúvidas, raiva, arrependimento. Tal como os cowboys, são figuras condenadas a lutar por algo que talvez já esteja perdido, mas que ainda assim vale a pena defender.
E, mostra-se a ironia e hipocrisia do “progresso civilizado”, com tacos de golfe, campos artificiais, turismo milionário, em contraste com a vida simples e o “slow living” alentejano.
Será impossível continuar a lutar?
Uma das frases que ficou na minha mente foi a de Al Berto (dita em 1982) e aparece no final do espetáculo em vídeo: “Dentro de pouco tempo será impossível viver aqui.” Já não se consegue…
Mas a luta continua e também em vídeo é revelado que novas gerações estão a ser treinadas para lutar. Mas os golpes são apenas para lançar sementes de fé, unidos com a natureza e a sua identidade. Alguém tem de herdar a luta.
Porque o Alentejo é nosso. O western também. E Setúbal também é western.
E o futuro ainda está por escrever. Como está escrito no final do espetáculo, em letras grandes e muito ao estilo cowboy: “Continua…”
Bilhetes e próximas sessões
Os bilhetes para o espetáculo estão disponíveis em https://www.bol.pt/Comprar/Bilhetes/151604-foice-forum_municipal_luisa_todi/ até dia 13 de abril e terão algumas sessões especiais com convidados já a partir de amanhã:
11 de Abril – Conversa com o público após o espectáculo com convidados numa abordagem à luta e movimentos civis com Diogo Duarte
13 de Abril – Sessão com Língua Gestual Portuguesa pelas 16h00